Milhares de pessoas transitam todos os dias pelo centro de Caxias do Sul. A imersão na rotina parece, de certa forma, tornar homogênea uma parcela da população que trafega pelas ruas.
Eis que o fluxo é interrompido e, por alguns minutos, algo fora do comum chama a atenção - até dos mais distraídos. Eles estão em semáforos, paradas de ônibus, nas calçadas e praças. Alguns escolheram esta vida, se dizem artistas de rua; outros, encontraram nas apresentações com diferentes instrumentos sua única alternativa de sustento.
— As apresentações de rua ou na rua são democráticas e acessíveis a todos. Se por um lado as pessoas não foram buscar aquela apresentação de música ou de malabares por vontade própria, o caminho escolhido lhes oportunizou assistir algo diferente. Pagar, nesse caso, é uma escolha do passante. A troca é simbólica. Poucas moedas por poucos segundos para escapar da simples observação do sinal fechado que em breve vai abrir, ou ainda, ganhar um bom dia e um sorriso que poderá mudar o curso do dia de quem o recebeu — observa a pesquisadora, professora e coordenadora do curso de Artes Visuais da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Silvana Boone.
De uma forma ampla, Silvana diz entender a arte como um conjunto de manifestações criativas cujo propósito é ampliar o pensamento sobre algo, provocar o espectador a sair da sua zona de conforto, fazer pensar sobre questões que talvez não sejam do seu cotidiano.
— A arte tem um alcance muito amplo e pode se manifestar na rua também. O trabalho das pessoas que oferecem alguns minutos de distração no semáforo ou na praça pode ser considerada uma forma criativa de ganhar a vida ou de forma mais poética, pode ser o compartilhamento daquilo que essa pessoa tem de mais significativo.
"A arte é importante em toda e qualquer circunstância"
Tudo começou com uma brincadeira: Alexandre Brumelhaus Santos, 30, estava em Torres, no Litoral Norte, e aprendeu a fazer malabares usando bolinhas. Treze anos se passaram e, desde então, é com esta "brincadeira" que o malabarista ganha a vida. Há quatro anos, a "brincadeira" foi ainda mais longe e Santos passou a usar três facões em suas performances.
— As facas não têm fio — tranquiliza Santos que, mesmo assim, diz tomar alguns cuidados para evitar ferimentos.
Encontramos com ele em um final de tarde, no semáforo da Avenida Itália, esquina com a Avenida Rio Branco, no bairro São Pelegrino, em Caxias. Como se recepcionasse quem acessa a cidade de carro pela via, ele realmente se divertia exibindo sua habilidade toda vez que o sinal fechava e a plateia motorizada se formava diante dele.
Por alguns segundos, intercalados entre o pare-e-siga, a faixa de segurança virou palco e os pedestres, figurantes involuntários da performance de pouca ambição por parte daquele que se diz artista:
— Quando o sinal fecha e eu consigo arrancar um sorriso já é válido, se eu ganhar uma moeda, melhor ainda.
Há pouco mais de um mês, ele circula por Caxias do Sul levando os malabares para diferentes esquinas do centro. São cerca de quatro horas por dia dedicadas ao ofício. Em dias mais movimentados, Santos atua o dobro de tempo para garantir mais sorrisos e, claro, mais moedas.
— Agora eu pretendo juntar um dinheiro pra ir até a Bahia — revela o andarilho que, com os malabares, já conheceu seis estados brasileiros, visitando uma média de 15 cidades em cada um deles.
— Minha maior alegria foi quando cheguei no Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. Minha avó de Sarandi sempre dizia que era muito longe, e ela tinha razão! Mas eu cheguei lá.
A rua virou não apenas um palco, mas também uma escola. Segundo ele, é comum a troca de experiências entre as pessoas que se apresentam Brasil afora. Foi nesse intercâmbio informal que ele introduziu os facões ao malabarismo (confira no vídeo abaixo), com lições passadas por um artista de rua uruguaio.
Ganhar a vida nas ruas, com malabares, não estava nos planos de Santos. Na adolescência ele chegou a trabalhar no setor comercial de um jornal farroupilhense. Nas horas livres, o malabarista gosta de passear pelas cidades onde se instala, em quartos emprestados, hospedagens ou mesmo na rua. A solidão ainda é um dos maiores desafios a serem enfrentados por quem escolhe uma vida como a dele. A parte boa, ele afirma, é viver livre e, sobretudo, aproveitando o momento presente.
— Isso me fascina, eu não sei pra onde vou depois daqui. Não penso no futuro, nem no passado, o agora é ideal.
Citando a Constituição Federal de 1988, ele reafirma o direito de estar na rua, levando arte para as pessoas, atividade a qual ele exerce missão:
— A arte é importante em toda e qualquer circunstância, tanto pra quem conhece quanto para quem não conhece, a gente vive em um mundo tão cinza...
"A arte está em mim"
Aos 21 anos, o jovem Thiarlee Luccas — que já foi batizado com nome de artista — sabe bem o que quer para o seu futuro. E não é de hoje. Morador de Farroupilha, ele faz malabarismo com fogo nos semáforos de Caxias do Sul há dois anos. Há seis, porém, ingressou no mercado da arte, por meio do artesanato. O malabarismo substituiu a venda de colares por ser mais rentável atualmente, segundo o jovem, que considera a performance uma forma de expressar sua arte.
— A arte tá em mim, seja escrevendo poesia, música, fazendo artesanato, malabares... Pretendo viver disso pro resto da minha vida, a arte tá em tudo — exclama.
Thiarlee lembra bem do momento em que decidiu investir em suas habilidades artísticas e buscar uma forma de obter renda por meio da atividade que lhe dá prazer.
— Quando eu tinha 15 anos estava trabalhando para um restaurante. Eles iam assinar carteira quando eu completasse 16, mas antes disso, em um dos pagamentos, não cumpriram com o valor combinado. Isso fez com que eu ficasse revoltado com essas pardas de trabalhar para os outros e tal.
Naquela época, o então adolescente enfrentou ainda a barreira do preconceito no mercado de trabalho, encontrando dificuldade para conseguir um emprego por conta do dreadlock, penteado permanente que tinha feito no cabelo.
— Eu já sabia fazer artesanato, meus amigos queriam comprar a minha arte e eu pensei que na rua as pessoas também poderiam querer.
Foi o que aconteceu. Enquanto circulava pelas ruas vendendo suas peças e buscando material para confecção, Thiarlee conheceu a Dona Dalva, artesã que lhe presenteou com o material de malabarismo. O que começou como diversão tornou-se a profissão do jovem, que trocou as vendas pelas apresentações nos semáforos.
— Eu me sinto bem trabalhando com isso, não preciso dar satisfação de horário e consigo viver bem. Acho que ganho melhor do que se estivesse com carteira assinada.
De fato, a habilidade e a simpatia do jovem malabarista (confira o vídeo abaixo) recebem um bom retorno financeiro. Nas quatro horas que dedica por dia às apresentações — sempre à noite, para valorizar a luz do fogo — ele diz receber uma média de R$ 25 por hora. Dependendo do dia, o valor pode chegar a R$ 50 por hora.
Em dois anos, Thiarlee garante que nunca sofreu nenhum acidente no trabalho com fogo, mas pretende, em um futuro breve, mudar-se para o Exterior. Enquanto esse dia não chega, ele segue nas ruas caxienses oferecendo o que tem de melhor em troca de apoio financeiro.
— Tá chegando ao ponto das pessoas entenderem que o que eu to fazendo é trabalhar e não vagabundear, como algumas pessoas até gritam quando passam. Eu não peço nada em troca, as pessoas apoiam porque gostam.
Show de entretenimento
Em uma tarde ensolarada, uma pequena multidão se amontoava na Praça Dante Alighieri, o palco da diversidade caxiense. No centro do círculo formado por olhares atentos, um show improvisado. A promessa de um salto acrobático no meio de um aro cheio de facas era o que prendia o público. Claro que os truques de mágica, a inteiração carismática com as pessoas e a experiência de 27 anos trabalhando em dupla, colaboram para que Damião Ricardo Ferreira, 53, e José Francisco da Silva, 56, se destaquem por onde passam.
Aquela terça-feira do início de setembro foi o segundo dia deles em Caxias do Sul. Segundo dia deste ano, já que a dupla frequenta a cidade há cerca de 12, apresentando o mesmo show de rua que levam para diversas partes do Brasil, além de países como Paraguai, Uruguai e Argentina.
— Gosto de fazer o que faço, tem gente que chama de vagabundo e charlatão, algumas pessoas realmente são pobres de espírito, mas tem muita gente que dá valor ao nosso trabalho — comenta Damião, que é carioca e aprendeu acrobacias cedo, ingressando no circo aos 18 anos.
Fazendo o que gosta, ele ganha a vida nas ruas e pede contribuições espontâneas em troca do entretenimento que oferece. Simples e funcional. De moeda em moeda, em shows que duram aproximadamente uma hora, realizados várias vezes por dia, ele e o colega conseguem pagar, pelo menos, viagem e hospedagem. Quem colabora ainda ganha uma pomada para massagem que promete aliviar dores musculares.
A expectativa alimentada com a promessa do salto vai crescendo. Algumas pessoas desistem e vão embora, outras, aguardam ansiosas o grand finale, que realmente acontece (confira o vídeo abaixo).
— Eu tenho coragem de passar pelas facas e não de pegar uma faca dessas para matar ou roubar como muitos por aí fazem — justifica Damião, que se autodenomina artista circense de rua.
Damião reveza os saltos com o colega José, baiano que cresceu no Rio de Janeiro, mas que mora há 28 anos em Porto Alegre. Sua experiência com apresentações na rua começou há 36 anos, com performances de capoeira. As facas, segundo ele, vieram depois, sendo apresentadas por um amigo da Colômbia. Este pode ter sido o último show da dupla na cidade, porque José tem planos de ir morar nos Estados Unidos em dezembro, juntando-se à filha que vive por lá há três anos.
— Ela conseguiu um emprego para mim e vai casar no dia 20 de fevereiro, dia do meu aniversário — relata o pai orgulhoso, que com o trabalho de rua diz ter criado ela e outra filha, que fez até intercâmbio na Europa.
José cresceu sem pai e sem mãe e diz saber bem o que é viver na rua. Ele resolveu transformar essa mesma rua em palco, deixando de ser invisível para quem passa. A experiência de vida o aproxima de pessoas que encontram no show uma distração da rotina, por vezes dura demais.
— É um dom que Deus dá para as pessoas certas. O povo não enjoa porque a gente trata todo mundo bem.