Caxias do Sul é terra de fé. Nenhuma novidade nisso, já que essa característica é reconhecidamente uma das principais marcas da imigração italiana que moldou hábitos e culturas por aqui desde o final do século 19. Mas é verdade que a Caxias da fé nunca foi de uma fé somente. Entre as diversas crenças e práticas religiosas que a cidade abriga, uma ganha força amplificada por vozes que cantam com o vigor de quem deseja ser escutado longe, mais precisamente, na África Ocidental.
Leia mais:
3por4: Coletivo Ser Legal promove almoço senegalês neste domingo, em Caxias
Senegaleses fazem a festa no Centro de Caxias do Sul com vitória na estreia
Chef do Senegal dá dica de receita para o almoço da classificação para as oitavas
– Quando cantam, aquilo que está na palavra vai se irradiar para mais longe, para mais pessoas, com mais energia. Tem uma autora (Christine Dang) que fala da peregrinação sônica, esses cantos servem como uma espécie de passagem ao território sagrado de Touba (a cidade sagrada dos senegaleses), através disso, eles reforçam sua identidade, voltam para casa espiritualmente – explica a jornalista, pesquisadora e professora da Faculdade Murialdo Juliana Rossa, que acompanha os ritos religiosos dos senegaleses moradores de Caxias desde 2013 e desenvolveu a tese de doutorado Cantos Religiosos de Senegaleses Murides: escrita, leitura, poética vocal e performance.
Você já deve ter cruzado com os cantos senegaleses por aí. A Praça Dante Alighieri – a bem poucos metros do crucifixo católico que o prefeito Daniel Guerra (PRB) mandou instalar simbolicamente no espaço público da Casa da Cultura –, é um dos locais onde os grupos de imigrantes se sentem mais à vontade para expressarem sua fé por meio do canto. Aos domingos, é comum ver senegaleses reunidos rezando em uníssono, reverberando palavras que os caxienses não compreendem. A energia desprendida por eles por meio da voz, no entanto, é facilmente identificada por qualquer um.
Além da praça, os senegaleses também possuem em Caxias uma dahira, nome dado à associação religiosa onde o grupo se encontra para rezar. Atualmente, ela está instalada numa casa alugada na Rua José Tovazzi, no bairro Cruzeiro. Aos domingos, dezenas de imigrantes utilizam aquele espaço para compartilhar refeições, estreitar laços e, especialmente, para rezar cantando.
– O canto dá muita força para as pessoas, elas ficam sentindo que estão realmente dentro da religião. É o nosso momento, do nosso coração, é uma coisa bem importante e bem grande, a gente fica muito feliz. É bem especial, tem algumas pessoas que ficam chorando, gritando, porque elas sabem o que as palavras estão dizendo – relata o comerciante senegalês Abibou Diop, 29 anos, mais conhecido como Abib.
Atualmente, cerca de 600 senegaleses vivem em Caxias e Abib integra o grupo dos que mais possuem preparo e estudo na questão religiosa. Ele passou 10 anos em escola corânica no Senegal, dissecando o conteúdo do Alcorão, aprendendo árabe e exercitando a leitura das khassidas – como são chamados os poemas sagrados escritos pelo Cheikh Amadou Bamba (1853-1927), o líder religioso mais cultuado pelos senegaleses murides, vertente do islamismo.
– A maioria dos senegaleses em Caxias é muride, inclusive, tem alguns estudos que falam do muridismo enquanto facilitador na migração. Os laços murides defendem que, mesmo que as pessoas não se conheçam, que se ajudem – esclarece Juliana.
As khassidas contêm os poemas lidos e cantados pelo grupo durante os encontros dominicais na casa do bairro Cruzeiro. Na dahira, eles geralmente rezam dispostos em círculo, sentados ao chão. Nem todos cantam, é preciso bastante estudo e poder aguçado de afinação e entonação para tal. Quem não canta, também se emociona enquanto escuta, pois as palavras ditas exprimem todo o poder da fé muçulmana mantida com fervor por aqui.
– Quando cantam com muita emoção, podem até entrar em transe, desmaiar. Presenciei momentos assim mais de uma vez. É uma manifestação muito pura. Algumas vezes quando escuto essas khassidas eu choro. Eu não sei muito o que é, mas sei que é muito importante para eles, que está trazendo uma energia boa. Algumas me comovem, um escrito lá de 100 anos atrás vem numa pessoa, canaliza e depois multiplica por aqueles cantores. Aquilo irradia, é uma energia que mexe comigo – revela Juliana.
A música é linguagem presente em religiões das mais distintas vertentes, ganhando sentidos diferentes em cada caso. Para os senegaleses, há tanto uma questão coletiva, de pertencimento e identidade cultural, quanto um momento de gratidão individual.
– Uma maneira de mostrar para Deus que você se sente privilegiado. É retribuir. Quando fazemos nossa reza, é isso que sentimos – resume o senegalês Demba Sokhna, 30.
– O canto e a música são talvez as formas mais antigas de religiosidade – acrescenta a Irmã Maria do Carmo Gonçalves, que acompanha de perto as movimentações dos senegaleses em Caxias (leia mais a seguir) e foi coordenadora do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM) de 2010 a 2018.
A religiosa católica lembra, inclusive, de um momento marcante do canto dos senegaleses moradores de Caxias. Foi numa ocasião de introspecção, quando o grupo se reuniu na Praça Dante para aguardar o corpo de um imigrante assassinado, em 2016:
– Quando o corpo chegou, um menino cantou à capela um canto triste, um hino de despedida. Chego a me arrepiar só de lembrar. Calava na alma, uma expressão de dor por aquela pessoa ter morrido de forma violenta e injusta, mas também um louvor por aquela vida que tinha terminado. Foi uma experiência muito forte, misto de dor e de esperança.
Diferentes cantos
Do grupo de senegaleses que vive em Caxias do Sul, podem ser identificados com certa facilidade dois segmentos da religião muride – vertente dentro da fé muçulmana mais comum entre os imigrantes habitantes de Caxias. Durante os encontros religiosos, os mais ortodoxos costumam vestir-se com longas túnicas de cores claras. São eles quem cantam lendo as khassidas, geralmente sentados em círculo. Já o outro grupo costuma usar roupas mais coloridas, feitas de tecidos que exibem uma espécie de patchwork. Esse grupo possui uma tradição oral, ou seja, não canta lendo. Eles que costumam rezar na Praça Dante Alighieri, de pé, muitas vezes se movimentando numa espécie de dança e repetindo sem parar a expressão La illalaillahlah (confira no vídeo acima), que quer dizer “só existe um único Deus”. Outra diferença com relação aos murides mais ortodoxos é que eles podem usar instrumentos de percussão enquanto rezam.
Ambos cultuam o líder Cheikh Amadou Bamba, porém, os integrantes do segundo grupo apresentam grande ligação também com Cheikh Ibrahima Fall (que foi contemporâneo e seguidor de Amadou Bamba). Por isso, os senegaleses do segundo grupo, aqueles que usam as roupas coloridas estilo patchwork, se autodenominam Baye Fall (lê-se baifál).
– Quando estava à procura de um líder, Ibrahima Fall começou a andar pelo interior, cruzando desertos, savanas. Ele ficou com cabelos compridos, cabelos ao estilo de dreadlocks, as roupas dele iam rasgando e ele ia remendando, e ficou tipo um patchwork. Por isso, alguns murides Baye Fall cultivam esse visual – indica a pesquisadora Juliana Rossa.
Questão corpórea
Para quem nunca acompanhou de perto um Kurel khassida, como são chamadas as espécies de corais senegaleses que ocupam espaços como o existente no bairro Cruzeiro, em Caxias, a doutora em Antropologia Social pela UFRGS Fanny Longa Romero descreve com detalhes o ritual da oração cantada pelos senegaleses. “Os cantos têm uma potência rítmica que é organizada por uma pessoa (uma espécie de Maestro) que comanda a recitação e se identifica apenas ao alçar a voz, entoando uma longa recitação que é seguida pelos outros. Ao cantar e aumentar a voz, percebe-se às vezes que eles tampam as orelhas com uma das mãos; a concentração aqui é necessária para não errar a repetição das frases e a sequência das recitações. Elas são longas e precisam de muito tempo de prática para juntar e alinhar as vozes”, explica ela em artigo integrante do livro A imigração senegalesa no Brasil e na Argentina: múltiplos olhares (2017).
Já a jornalista e pesquisadora caxiense Juliana Rossa descreve em sua tese de doutorado a presença de elementos como “o cinto amarrado no abdômen, o suor, as mãos que seguram as orelhas como que comprimindo em si a energia disseminada pela voz” e até mesmo “as dobras de oitavas nas notas musicais, atingindo o máximo agudo possível”.
Essa questão corpórea, na verdade, foi um dos focos da pesquisa de Juliana. Ela entende que a voz dos participantes dessas orações cantadas não emana somente da voz em si, mas faz parte de uma performance que envolve todo o corpo. Há muitos gestos envolvidos e, assim, a vocalidade da poesia oral muride “evoca o divino, o sagrado de cada um, fazendo ressoar no corpo as palavras”.
Fé que aproxima
Se os imigrantes italianos cultivaram sua fé e os santos de seu país de origem como forma de não esquecer de suas raízes identitárias, o mesmo aconteceu (e acontece) com os senegaleses que começaram a chegar em Caxias do Sul no ano de 2010. As manifestações religiosas assumem, assim, um papel na criação de vínculos importantes para enfrentar as dificuldades que se apresentam longe de casa.
– A fé foi e é fundamental para os processos de migração deles. Estes espaços que eles criaram de religião são espaços que favorecem muito a entreajuda, a solidariedade, o apoio. Ao mesmo tempo, esse coletivo religioso também favorece o contato com outros grupos religiosos. A igreja católica em Caxias sempre teve um pessoal muito solícito no sentido de ajudar e de acolher – aponta Maria do Carmo Gonçalves, religiosa católica que acompanhou de perto toda a movimentação migratória dos senegaleses em Caxias e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado sobre a dinâmica entre a imigração e a religião.
– São pessoas que passam por muitas dificuldades, é a questão do preconceito, do idioma, é a saudade da família, no meio disso tudo, eles têm uma força grandiosa que vem da religião e da fé – completa a Irmã.
O senegalês Abibou Diop (Abib), que vive em Caxias há cinco anos, traça uma conexão direta entre a fé e o objetivo da maior parte dos senegaleses que sai de seu país em busca de uma vida melhor, como ele também fez.
– O objetivo de vir para cá é manter a família. E é a religião que nos ensina a importância de trabalhar para a ajudar a família, um irmão, uma irmã – justifica.
– Se não tivesse fé na minha vida, eu não teria deixado meu país para vir ao Brasil buscar uma vida melhor, um trabalho e lutar. Com a fé, consegui me manter equilibrado. Cada vez que tem algumas perguntas que a resposta nem eu e nem meu espírito vai saber, aí eu devolvo para a religião, boto a fé na minha frente, e isso eu considerado um equilíbrio, sabe – complementa o senegalês Demba Sokhna, há seis anos em Caxias.
A fé também acaba por aproximar os próprios imigrantes entre si. Conforme Abib, cerca de 80% dos senegaleses que aqui se encontram, não se conheciam em seu país de origem:
– É uma ligação importante, que só acontece por causa da religião. A gente se encontra pela religião.
A Irmã Maria do Carmo destaca outra faceta importante na fé dos muçulmanos senegaleses que vivem em Caxias: o envolvimento comunitário. Além de defenderem o respeito a qualquer tipo de crença, eles também procuram promover integração, convidando caxienses para participarem de suas festas religiosas e eles mesmos também tentam se envolver com as tradições locais – um exemplo é a participação de senegaleses na romaria de Nossa Senhora de Caravaggio, um dos costumes católicos mais tradicionais na cidade.
– Eles organizam a festa religiosa pelo aspecto do encontro, da confraternização, da oração juntos, do compartilhar. Eles resgatam um aspecto tão importante, um aspecto que talvez a gente até já perdeu um pouco, que é do encontro comunitário, do valor da comunidade, do coletivo construindo um momento de oração. Não é um grupo fechado, é muito aberto – festeja a Irmã Maria do Carmo.
A religiosa defende ainda que as diferentes manifestações de fé se aproximam num objetivo compartilhado de transformar a sociedade para melhor. É nesse objetivo que todos se tornam iguais.
– Quando os senegaleses participam da romaria a Caravaggio, eles querem transmitir uma ideia assim “somos de uma religião diferente, mas comungamos desse mesmo sentimento religioso, desse caminho que talvez as religiões tenham de construir, dos espaços de convivência pacífica, da luta contra as injustiças, de agregar as pessoas independente das diferenças” – reflete.
Conversão e reversão
Em cada cidade onde uma comunidade senegalesa se instala, não é raro encontrar pessoas de outras nacionalidades e religiões que acabam decidindo assumir a fé muçulmana. Os muçulmanos chamam isso de “reversão” e não de “conversão” à religião.
– Eles falam reverter porque, na verdade, todo mundo já seria naturalmente muçulmano, é como uma nova forma de viver aquilo, seria só um reconhecimento. Então, eles não falam conversão, falam reversão – esclarece a pesquisadora Juliana Rossa, que esteve no Senegal em 2017 e conferiu de perto detalhes sobre o muridismo.
Um desses casos ocorridos em Caxias foi protagonizado pela atendente Jacqueline de Jesus Silva, 26 anos. Ela casou-se com o senegalês Demba Sokhna, 30, mas isso não a obrigaria a assumir a religião do marido. Ela o fez por razões individuais.
– Pelo respeito à religião, à ação social, pela valorização do ser humano, pelo senso de partilha, de dividir o pão com o próximo... Tudo isso me encantou e me fez buscar a religião – justifica ela, que ganhou o nome muçulmano de Maguette Sene.
Assumindo a religião muçulmana, Jacqueline também assumiu responsabilidades como as cinco orações diárias feitas pelos imigrantes e o jejum durante o Ramadã, por exemplo.
– São rituais que me emocionam – diz.
As mulheres não possuem os mesmos direitos dos homens na religião. Por exemplo, não podem participar das rodas de canto e é indicado que resguardem o corpo no dia a dia. Para Jacqueline, no entanto, a religião muçulmana trouxe uma nova perspectiva no aspecto feminino:
– Eu me sinto mais valorizada. Para a religião muçulmana, tudo na mulher tem uma dimensão elevada. Por exemplo, não tenho mais aquela visão antiga de que tenho que me exibir para ser bonita ou sexy.
Intolerância religiosa
A intolerância religiosa não é um assunto sobre o qual os imigrantes senegaleses costumam falar abertamente. Quando questionados, geralmente revelam saber que ela existe, mas que não sentem essa dificuldade exatamente ligada ao fator religioso.
– As pessoas perguntam sobre o corpo vestimentário. As “tuniques” que a gente usa para comemorar os eventos. A nossa religião é baseada na paz e na confraternização, a gente compartilha e respeita outras religiões também. Se tiver preconceito, eu não vi, nunca passei por isso – afirma Demba Sokhna.
Para a Irmã Maria do Carmo Gonçalves, as questões raciais ou ligadas à xenofobia nortearam mais diretamente os casos de intolerância envolvendo os imigrantes senegaleses. Para ela, a fé é justamente um elemento a favor do grupo muçulmano que vive aqui, um canal de conexão com os caxienses:
– Do ponto de vista religioso, acredito que há um respeito, até porque a comunidade caxiense me parece que tem muito esse sentimento religioso e reconhece isso numa comunidade que vem de fora, e respeita isso. Tanto que chamavam muito eles (senegaleses) para falar nas escolas, explicar sobre o que significava a religião. As pessoas têm muita curiosidade quanto a isso.
O senegalês Abibou Diop diz que há uma preocupação da comunidade senegalesa em não causar incomodação por conta de sua fé e de seus cantos.
– As pessoas são diferentes, suas religiões também. Eles (caxienses) não sabem o que nós estamos falando, por que nós estamos fazendo isso. Se tu chegar num lugar e não souber nada do que estão falando, pode ser complicado, é normal. Mas a gente dá uma tolerância para não incomodar as pessoas. A nossa religião defende que não podemos fazer coisa errada e incomodar alguém pode ser isso, uma coisa errada. Então, a gente fecha as portas, tenta não incomodar – pondera o imigrante.
Vizinha de porta da associação religiosa onde os senegaleses costumam se encontrar para rezar, no bairro Cruzeiro, a dona de casa Daniela da Silva Rios, 36 anos, diz que admira muito o grupo que aparece por lá aos domingos. Mas ela conta que, infelizmente, o sentimento não é compartilhado por todos os vizinhos:
– Eles cantam alto, muitos não gostam. Eles fazem comida, daí o cheiro é muito forte e alguns vizinhos ficavam incomodados. Cada um tem sua religião e acho que tem que existir um respeito entre nós, mas não é todo mundo que pensa assim.
Praticante da religião evangélica, Daniela diz admirar a maneira como os senegaleses se organizam religiosamente.
– Eu acho bonito o jeito que se vestem, a religião deles. Acho que se nós brasileiros fôssemos unidos como eles, o país não estaria como está hoje. Gosto de ver a união deles, são pessoas boas de coração – defende.
Para a pesquisadora Juliana Rossa, quanto mais conhecimento houver sobre a religião e as crenças dos senegaleses habitantes de Caxias, mais enfraquecida ficará a intolerância.
– A religião é cultura. Existe um estigma muito grande contra os muçulmanos, existem várias formas de vivenciar essa religião que as pessoas não conhecem. Conhecer é uma forma de não estigmatizar, inclusive o islamismo. Os senegaleses trazem questões do trabalho, da dedicação à religião, são coisas puras, boas – defende.