Um dos maiores apelos da bem sucedida série Stranger Things, da Netflix, certamente é a nostalgia que envolve a louca vida dos anos 1980. Das roupas aos cenários, dos filmes às músicas, cada detalhe foi pensado para fazer a saudade fervilhar. Ao remexer o baú, a reportagem resgatou histórias e comportamentos que mostram um cotidiano da juventude de Caxias do Sul não muito diferente de Hawkins, cidade fictícia da série.
Havia um pouco de tudo na Caxias dos anos 1983 a 1985, período da trama: histórias surreais, comportamentos com misto de inocência e libertação e situações engraçadas que só poderiam ter acontecido na era mais pop da história. Foi também a formatação de um cenário de fortes mudanças sociais, que só seria melhor aproveitado pelas gerações seguintes. Confira um recorte do ambiente pop na Caxias da era analógica.
Provinciana
Já foi dito que Caxias era uma pequena São Paulo e também uma grande colônia. As duas percepções não estão erradas. Nos anos 1980, um dos problemas urbanos eram as vacas e os cavalos que perambulavam pelas ruas centrais, como apontavam reportagens da época. Em maio de 1983, um bezerro provocou confusão em plena Praça Dante Alighieri (ou Rui Barbosa como era chamada).
Mistério
Das situações mais estilo Stranger Things, uma delas beirou ao surreal. Em setembro de 1983, um morador da cidade virou assunto nacional ao ser apontado como sendo Carlos Ramires da Costa, o Carlinhos, menino de 10 anos sequestrado nos anos 1970 no Rio de Janeiro. Por algum motivo, alguém achou que Carlinhos estava vivo e chamava-se Laudelino Fô, jovem que vivia sozinho em Caxias. Foi um alvoroço nacional. A investigação comprovou que ele não era Carlinhos e os mistérios continuaram sem desfecho: Laudelino não descobriu sua origem e Carlinhos jamais reapareceu.
Romantismo
O comportamento mais recatado em torno das relações amorosas provavelmente começou a dar os últimos suspiros lá por 1985, situação muito bem retratada na série. Em Caxias do Sul, sem Facebook ou Tinder para marcar o alvo da semana, exigia-se desinibição para se aproximar do interesse romântico na escola ou na balada. Outros preferiam mandar bilhetinhos pelo garçom.
Agitadora cultural, Lulu Alberti, 51, relembra os encontros das turmas na esquina do Clube Juvenil todos os finais de tarde, momento ideal para a paquera e descontração, e também de preparativos para a festa do final de semana. Nem todos admitiam, mas o friozinho na barriga era inevitável quando o DJ rodava uma canção romântica para embalar futuros namoros.
— Se ficava esperando a hora da música lenta para alguém te tirar para dançar — ri Lulu, ao resgatar a sua passagem dos 15, 16 anos.
A tendência de alguém ficar com mais de uma pessoa numa mesma balada deslanchou no final dos anos 1980 e não parou mais.
— Ah, mas uma pessoa assim não era muito bem vista — garante a caxiense.
Os mais belos
Nancy Wheeler personifica o papel da bela e perfeita em Stranger Things. Em Caxias, o imaginário sempre esteve por conta das soberanas da Festa da Uva, mas para a camada mais jovem, eram as rainhas de escolas, as debutantes e rainhas dos clubes que mereciam atenção. Os eventos de gala para apresentar as adolescentes de 15 anos congestionavam as quadras no entorno do Juvenil, Juventude e Guarany nos anos 1980. Dos bailes, muitos seguiam para tomar café da manhã nos hotéis.
— Naquela época, os bailes de debutantes eram extremamente esperados. Tínhamos vários encontros, o pré-debut: palestras, aulas de etiqueta, festas e ensaios .Foi uma época marcada por mais encontros, mais presenças e por lembranças que ficaram eternizadas dentro de nós — salienta Daniela de Queiroz Fochesato, 50, professora de inglês e rainha do Juvenil em 1986
Mas havia mais.
Em 1984, uma comissão criou o concurso Gatão Caxiense, que pretendia valorizar a beleza masculina. Simpatia e estatura adequada estavam entre os requisitos avaliados pelos jurados no antigo Café Soçaite. O evento não durou muito e foi extinto. Alguns jovens até se arriscaram na carreira de modelo depois da participação no concurso.
Rock para dançar
O pop rock rola em Stranger Things. Em Caxias, a trilha era parecida. As festas mais populares entre a gurizada dos 15 aos 20 eram animadas por músicas que hoje dificilmente fariam a pista bombar, exceto em eventos temáticos dos anos 1980. Imagine dançar ao som de Sonífera Ilha, dos Titãs? Claro, havia o ritmo do passinho estilo Modern Talking propagado pelas equipes de som itinerantes nos ginásios de escola e de associações. O Som Fantasy com o velho rock'n'roll foi uma das poucas sobreviventes do período e segue firme com mesma pegada.
Minha guitarra
Ter uma banda de rock em Caxias virou sinônimo de sonho realizado. Algumas turmas começaram com os três acordes básicos, outros foram mais ousados desde o início, caso da Apocalypse em 1983.
— O rock vinha vinha de geração em geração. Os filhos ouviam os discos dos pais, tinham que ouvir rádio e depender que alguém da família ou amigo comprasse o vinil. Muita gente conhecida em Caxias do Sul tocou em bandas — relembra o DJ Rocha Netto.
O produtor Jorge de Jesus, autor do documentário Volume Um! em bom som, acredita que a explosão foi proporcionada pelo Rock in Rio em 1985. Como tinha uma boa caixa de som, Jorge virou vocalista da antiga HPS.
— Há quem diga que a decisão de montar bandas tenha a ver com ganhar a primeira guitarra. Meu sonho era tocar para a galera da escola — lembra o produtor.
O forte cenário roqueiro persistiu até meados dos anos 1990. A Bandida, que nasceu da junção de músicos da HPS e de outros grupos, chegou a tocar no programa da Xuxa. Sensacional.
No final dos anos 1980, a cidade abriria o saudoso Teatro de Lona, palco de muitos e memoráveis shows de bandas.
Velocidade total
Entre os carros mais legais que aparecem na série, um deles é um Camaro do bad boy Billy Hargrove, sempre em alta velocidade. Nos anos 1980, a gurizada caxiense, como quase todo brasileiro, precisava se contentar com a potência que podia ser extraída de Monzas, Gols, Escorts, Chevettes e Opalões, além das motos Honda. Embora perigosa e ilegal, havia plateia numerosa para acompanhar os rachas na pista improvisada numa reta da Avenida Ruben Bento Alves, entre o trevo da Rua Ludovico Cavinato e a Rua Moreira César, tradição que migrou posteriormente para a Rota do Sol e provocou acidentes mortais. Detalhe: capacete era item raro e muita gente não gostou nem um pouco da obrigação de usar o cinto de segurança, regra que passou a valer no trânsito em 1985.
Fernando Luiz Galon, 46, era um dos guris na plateia. Não por acaso, migrou para a área da mecânica de veículos e virou sócio de Fabiano Hoffmann, o Chacal, conhecido preparador de carros de competição.
— Sim, tinha gente que colocava naftalina no tanque de combustível, outros conseguiam combustível de aviação. Não existia tecnologia e as coisas só mudaram no início dos anos 1990, com a entrada dos carros importados — diverte-se Galon.
Caravana da polenta
O shopping de Stranger Things é a vitrine dos jovens. Em Caxias, não havia palco melhor para ver e ser visto do que a Avenida Júlio de Castilhos. Os passeios a pé e os flertes eram tradicionais desde os tempos antigos, mas foi nos anos 1980 que a mania evoluiu. Ninguém sabe ao certo como começou, mas uma das situações mais engraçadas era a longa fila de carros que se formava ao longo da avenida todos os domingos, apelidada de Caravana da Polenta. A velocidade máxima dos veículos não passava de 10 km/h, mas somente no trecho entre Rua La Salle e a Rua Marquês do Herval. As calçadas ficavam abarrotadas de gente para ver o vai e vem de carros e pedestres _ alguns passavam a tarde toda nessa brincadeira de gastar gasolina. A caravana durou até os anos 1990 e acabou repentinamente por conta da violência e também porque Caxias já tinha um shopping, no caso, o Prataviera.
Fila da alegria
As inúmeras referências dos filmes na série da Netflix não são à toa. Os anos 1980 possibilitaram a afirmação dos blockbusters, diversão preferida dos jovens num tempo em que streaming era algo inimaginável. Geralmente, os grandes filmes demoravam meses ou mais de um ano após o lançamento para serem exibidos em Caxias _ típico do Brasil. Na falta de algo melhor, em pleno 1983, os cinemas reprisavam velhos filmes como Superman (1978) e Guerra nas Estrelas (1977). Mas esqueça o conforto e variedade de serviços de um multiplex. Sob sol ou chuva, as filas eram na rua em frente aos saudosos Imperial, Ópera, Guarany, Vêneto e Central. O legal era ver as calçadas fervilhando de gente ansiosa pelos filmes, clima que se perdeu.
— Havia filas, na calçadas, inclusive à noite e isso não se vê mais. Caxias se recolheu em termos de convivência — pondera o jornalista, roteirista e pesquisador, André Costantin.
Ele vai mais além e revive a presença dos pequenos circos nos bairros, das lonas armadas nos terrenos perto da antiga Gethal. Para Constantin, a visão de um leão amarrado na esquina do bairro Kayser era um exemplo dos anos 1980.
— Levavam os animais desfilar pela cidade para chamar público. Minha filha de 13 anos não acreditou. Tenho uma visão caótica da cidade como vida coletiva, mas, de certa forma, a cidade também inserida num mundo que evoluiu.
Tudo era mais lento
Se você se irrita quando alguém demora alguns minutos para responder a uma mensagem no WhatsApp, certamente teria um ataque de nervos nos anos 1980. Tudo era mais lento. Para começar, telefone em casa era para poucos e os encontros de turmas precisavam ser marcados com antecedência ou as pessoas meio que já imaginavam onde achar os conhecidos em determinados dias e horários. Sim, as pessoas se viam pessoalmente para conversar. Edmar Nagl, sócio do tradicional bar Maria da Toca, lembra que havia um painel numa parede apenas para recados.
— Deixávamos um bloco de bilhete, caneta e alfinete para pregar no mural. As pessoas deixavam recados para os amigos, marcando encontro para a semana seguinte, dizendo que haviam estado no bar e onde estariam outro dia — ri Edmar.
Tudo era caro
O Brasil estava com a economia em frangalhos entre 1983 e 1985. A gurizada mais pobre tinha que optar entre a escola e o trabalho para ajudar a família. O consumo, portanto, era mais restrito.
Produtos de qualidade eram quase todos importados e caros. O DJ Rocha Netto cita a dificuldade para ter acesso aos discos de vinis de artistas internacionais.
— Quando John Lennon morreu, fui buscar uma encomenda de discos na Varig e estava ali o disco dele, que havia sido lançado há cinco meses e não tinha chegado no Brasil. Finalmente conseguimos, 12 horas após a morte dele, tocas as músicas pela primeira vez nas rádios locais — conta.
Quem não tinha dinheiro para comprar camisetas originais de marcas como Sundek pegava um desenho de uma revista qualquer e levava até a antiga Trampolim, na Galeria do Comércio. Saía da estamparia vestindo a última moda em surfwear, segundo lembra o jornalista Fabiano Finco.
Nem todo mundo tinha condições de comprar um videogame da Atari, que chegou ao país em 1983. A diversão mesmo estava concentrada nos fliperamas abertos em São Pelegrino e no Centro.
Precoces
Nem tudo era tão tranquilo. Disputa entre turmas rivais eram comuns, mas uma série de conflitos entre jovens da classe média alta explodiu na noite caxiense da década de 1980, com direito a tiroteios.
Sem relação direta com a violência, os estudantes do Carmo e do Cristóvão de Mendoza, as duas escolas de maior referência na cidade, também não se bicavam muito. Aliás, os estudantes dos anos 1980 pareciam mais afeitos a lutar pelos direitos e chegaram promover uma greve em maio de 1983, comportamento desafiante para os padrões conservadores.
O brilho da noite
Balada para adolescentes era mesmo nas boates dos clubes. Casais iam ao Café Soçaite, outros preferiam os antigos bailões. Vianei Delazeri viu uma forma de ampliar horizontes. Apostou no entretenimento das danceterias e criou a boate Inverno-Verão na esquina da Marquês do Herval com a Os Dezoito do Forte em 1984. Entre as novidades, cinco ou seis TVs espalhadas pela casas para exibir filmes ou videoclipes, moda nos EUA. Um ano depois, abriria o Incitatus, que reunia quatro ambientes bem distintos para públicos variados num mesmo endereço. O equipamento de iluminação futurista Orion, que descia até o meio da pista, indicava a mudança de um padrão.
— Só havia boate nos clubes, para os sócios. Daí abrimos uma opção. Reuníamos 2,5 mil pessoas, público que hoje só é possível juntar em grandes shows — diz Vianei.