"Cada um deve fazer o que sabe fazer. O gato bebe leite, o rato come queijo e eu… Sou o palhaço”.
No premiado longa brasileiro O Palhaço, de 2011, Selton Mello soube traduzir com maestria os altos e baixos da vida circense: a adrenalina do picadeiro, a rotina itinerante, o carinho do público e a dificuldade em deixar os problemas de lado na hora de entrar em cena.
Indiscutivelmente, essa vida mambembe, meio sem rumo, entre metrópoles e vilarejos do interior, provoca curiosidade de quem mora “na cidade”, recorrendo à expressão utilizada pelos trabalhadores circenses para se referir àqueles que têm moradia fixa. Como é a vida de quem passa mais de 350 dias por ano na estrada? Como é a educação dos filhos? O que fazem nos momentos de lazer?
Foi com a intenção de jogar luz sobre essas perguntas que a equipe do Almanaque aproveitou a passagem do Circo Fantástico por Caxias do Sul para conhecer as histórias de quem ganha a vida embaixo da lona — seja no picadeiro ou nos bastidores.
Fundado há 24 anos por Mário Ferreira Casção, o Circo Fantástico já surpreende logo de chegada. Os trailers que servem de residência para os quase 50 estradeiros que levam alegria aos quatro cantos do Brasil ficam estacionados ao redor da grande lona. E não pense em desconforto ou situação precária, como nos circos de antigamente. Os veículos-casa são climatizados e equipados com cozinha, banheiro, dormitório e televisores.
Nessa incursão jornalística, realizada enquanto os artistas se preparavam para o espetáculo da última quarta (29), ouvimos quatro histórias: da bailarina Larah Braunig, que nasceu no circo e não pretende largar os palcos, da pipoqueira Valkiria Ferreira da Silva, que está na estrada há 30 anos e não cansa de conhecer novas cidades, da administradora Mônica Ribas Casção Guerreiro, uma das filhas do fundador, e do irreverente palhaço Maxaxinho, nome artístico do potiguar Carlos Antônio Rodrigues.
Para os leitores, um recado: a partir de agora, saem de cena repórter e fotógrafo e pisam no picadeiro os verdadeiros protagonistas do circo. Bom espetáculo.
LARAH BRAUNIG
Bailarina e acróbata
20 anos. Nascida no circo
Natural de São Carlos (SC)
Ofício de berço
Meu pai é de família circense e minha mãe era da cidade. Eles se conheceram e minha mãe decidiu seguir junto com o circo. Então posso dizer que trabalho no circo desde que nasci (risos). Desde pequenininho a gente tem esse contato e acaba aprendendo. Claro que tem muito treino, tanto na dança, quanto na acrobacia.
Estudar na estrada
Eu terminei o ensino médio, mas não fiz faculdade. Na verdade eu não quis, porque para fazer faculdade, sem ser à distância, é muito complicado. Cada mês a gente está num lugar diferente. Ou você faz faculdade à distância, ou você larga o circo para estudar em alguma cidade. Não tem como conciliar. Quando eu era criança, era um mês em cada escola. Todos os meus boletins, toda a minha documentação escolar, tudo ficava com uma pessoa responsável do circo.
Amizades passageiras
A vida no circo faz com que a gente conheça muita gente. A cada mês você conhece uma cultura diferente, uma cidade diferente, e muitas pessoas. Claro que o tempo passa e a gente precisa ir embora, mas você se acostuma com o tempo, se acostuma a não se apegar tanto às pessoas. E agora, com as redes sociais, é mais fácil manter contato com os novos amigos.
Preconceito
Querendo ou não, ainda existe essa divisão entre ser da cidade e ser do circo. As pessoas veem a gente (de forma) diferente. Algumas não têm preconceito, mas outras têm. É como se a gente fosse de outro mundo, algo sujo ou algo errado. Mas nossa vida não é assim. O circo é uma empresa como outra qualquer. Nós, artistas, somos funcionários como os trabalhadores de qualquer outra empresa. A diferença é que trabalhamos num evento que é itinerante, assim como um cantor.
VALKIRIA FERREIRA DA SILVA
Vendedora de pipoca
59 anos. Há 30 no circo
Natural de Belo Horizonte (MG)
Adeus, cidade
Eu conheci o circo quando ele passou pela minha cidade natal, que é Belo Horizonte. Foi aí que conheci meu ex-marido. Ele era o dono do circo. A gente se casou e eu fui embora. Me adaptei muito bem. É uma rotina diferente de quem vive na cidade, porque você conhece muitos lugares, pessoas diferentes. Aqui, somos todos uma família, mesmo não tendo o laço de sangue.
Vida itinerante
Estamos sempre rodando por aí, sem aquela obrigação de acordar, ir pro trabalho e voltar pra casa. Já rodei muito pelos estados do Nordeste, Espírito Santo, Minas Gerais. Esses lados do Sul que eu ainda não conhecia, então está sendo ótimo. Como os espetáculos são à noite, temos o dia livre para conhecer as cidades.
Pipoca, alegria da criançada
Já fiz muita coisa nesse tempo. Comecei trabalhando na divulgação dos espetáculos no circo do meu ex-marido. Esse aqui já é meu quarto circo. Aqui eu trabalho só na lanchonete, o que é muito divertido, um movimento que não para. Não tem quem venha no circo e não queira uma pipoquinha. Sempre digo, a pipoca é a alegria da criançada.
MÔNICA RIBAS CASÇÃO GUERREIRO
Administração do Circo Fantástico
45 anos. Nascida no circo
Natural de Rancharia (SP)
Vício pela estrada
Eu me casei com um advogado de cidade e consegui ficar só três anos fora do circo. Moramos em Alvorada do Oeste, em Rondônia, mas quase enlouqueci. Essa vida vicia, sabe? Hoje estou em Caxias, daqui a pouco estou em outro lugar. É sempre diferente. Na cidade, tudo era muito maçante, repetitivo. Parecia sempre a mesma coisa. Pra você ter uma ideia, o meu irmão é casado com uma gaúcha. E cada um dos três filhos nasceu num lugar diferente. O mais novo em Recife, a do meio em Manaus e a mais velha em Santa Catarina. Isso mostra o quanto a gente anda pelo Brasil.
Circo além da arte
Nós somos uma empresa. Itinerante, mas ainda uma empresa. Por isso precisamos pensar no melhor itinerário, no pagamento dos artistas, em conseguir sobreviver. Se o movimento não for bom, a gente pode baixar a lona e ir embora antes, porque a despesa é muito grande. E como trabalhamos com preços populares, tem que dar muito público pra coisa girar. Em Caxias, o movimento está muito bom. Inclusive estamos analisando estender nossa estadia.
Criação dos filhos
É algo muito natural, porque é como se fôssemos uma pequena cidade. No início, as professoras sempre ficam preocupadas se eles vão conseguir acompanhar o conteúdo, se vão ter dificuldade. Mas com o passar do tempo, elas ficam maravilhadas com a espontaneidade, porque para eles é tão natural trocar de escola, que acaba dando certo.
Lazer dos artistas
Eu vejo pelos meus filhos. Não tem esse negócio de balada. Nossos horários não batem com os da cidade. Nossa única noite de folga é na segunda-feira, quando muito lugar não abre. Temos dificuldade até em encontrar restaurantes abertos. A diversão dos nossos filhos é video game, andar de moto aqui no pátio… É diferente.
CARLOS ANTÔNIO RODRIGUES
Palhaço Maxaxinho
49 anos. Há 29 no circo
Natural de Mossoró (RN)
Sangue circense
Eu não nasci no circo, mas sempre fui fascinado por esse mundo. Quando era criança, toda vez que o circo ia embora da cidade, eu juntava uns colegas e brincava de fazer um circo no quintal de casa. Acho que a arte de ser palhaço veio no sangue. Sempre fui brincalhão, mesmo antes de conhecer meu pai, que também era palhaço. Quando eu conheci ele, com 20 anos, foi quando eu caí de vez na vida circense. E estou aí até hoje.
Vida na estrada
Gosto muito dessa vida de estradeiro, de artista circense. E no circo não tem a inconveniência de conviver com vizinhos que a gente não gosta (risos). Aqui é como se fosse uma cidade sobre rodas. O dono do circo é o prefeito, os artistas são os moradores. A diferença é que os vizinhos sempre mudam, porque os nossos trailers nunca ficam na mesma posição. Tem vezes que sou vizinho das bailarinas, outras vezes do pessoal do globo da morte. Isso é muito bom.
Ser palhaço em tempos sisudos
Sabe aquela música que diz “circo sem palhaço / namoro sem abraço / sou eu assim sem você”? É quase isso. No mundo de hoje, a gente precisa ser carismático, brincalhão. E palhaço é sinônimo de alegria. Na minha profissão, não tem como ir trabalhar aborrecido. Pra brincar com criança, até pra brincar com os adultos, você não pode estar mal humorado, se não você suja a imagem do palhaço. Claro que temos dias difíceis, mas no momento em que você entra no picadeiro, tem que entrar em cena o coração de palhaço.
Aposentadoria
Às vezes eu fico pensando como vai ser quando não puder mais pisar no picadeiro. Eu vou ficar só na saudade. A idade é uma coisa que chega pra todo mundo. Vai ter uma hora que vou precisar parar, quando o corpo não obedecer. Isso não é só na minha profissão, acontece pra todo mundo. É a vida.
Futuro do circo
Desde criança que ouço falar que o circo está morrendo, que o circo vai acabar. Mas eu acredito que enquanto houver o sorriso de uma criança, o circo e o palhaço não vão deixar de existir. Ele vai se modernizando, mas não vai acabar.