No Norte da Itália, região do Vêneto, vivem em Cornedo Vicentino pouco mais de 10 mil habitantes. Número semelhante ao de funcionários que aquele homenzarrão de 1,90m, que chegou à cidade em certo dia dos anos 1980, empregava nas suas empresas em Caxias do Sul, para onde o avô, Luigi Cristóforo, emigrara no final do século 19. Era a primeira vez que Raul Randon, acompanhado da inseparável esposa Nilva, visitava a terra dos seus antepassados, numa busca pelas origens que tomaria parte de seus esforços e reservaria algumas das maiores alegrias nos anos finais de vida (o empresário morreu em 3 de março do ano passado, aos 88 anos).
Em sua primeira visita, contudo, Raul ainda era um desconhecido a caminhar pelas ruas daquele povoado, atrás de informações sobre os remanescentes da família. Ao ser atendido à porta da casa de uma prima distante, passou por uma situação que jamais seria esquecida e se tornaria uma de suas histórias preferidas. A dona da casa, ao deparar com um homem tão parecido com o ex-marido, que havia morrido poucos dias antes, passou mal e quase desmaiou.
– Ali eu soube que era um autêntico Randon – contou anos depois ao amigo e jornalista italiano Paolo Meneghini, autor do livro Laurea Ad Honorem, que detalha a relação do empresário com o país que concedeu a principal honraria das mais de cem que recebeu em vida, a Laurea Doutor Honorem in Ingegneria Gestionale, concedida pela Universidade de Pádua.
Após aquela passagem nos anos 1980, Randon intensificaria a relação com a terra dos seus ancestrais retornando outras nove vezes, entre 2007 e 2017, acompanhado da família ou de amigos. Tornou-se amigo e um ídolo para aquela comunidade, que via no descendente de um dos seus egressos um homem de feitos inimagináveis. Era como se suas realizações fossem também as do avô, que deixou aquela terra por conta da extrema dificuldade em que vivia. Até hoje, os Randon italianos são pessoas humildes, que vivem basicamente da agricultura e do turismo e hotelaria. David Randon, filho que acompanhou Raul em diversas visitas a Cornedo, conta ter ficado impressionado com a semelhança daquele povo com os habitantes das colônias italianas da Serra:
– As festas de igreja, o galeto, a polenta, a fisionomia das pessoas, o jeito de andar, de falar. Não muda nada.
Atual diretor-presidente das empresas Randon, David considera que a identificação entre seu pai e a comunidade de Cornedo Vicentino se deu pelas maneiras simples, potencializada pela admiração que Raul despertava com a sua habilidade de aglutinar pessoas. Mesmo após a morte do patriarca, David ressalta que a família quer preservar esse elo.
– A árvore genealógica da nossa família vai 1747, sendo que ainda há antepassados mais antigos, que não temos a data certa. A ligação com aquela terra é muito longínqua, e poder preservá-la é muito importante. Para o meu pai, que sempre teve muita curiosidade pelas histórias que cresceu ouvindo do seu avô, de toda a dificuldade enfrentada, esse retorno à origem foi como fechar um ciclo – observa.
Para Paolo Meghini, o principal legado de Raul Randon para os italianos foi a alegria de fazer projetos juntos e de ser parte de uma comunidade:
– Raul foi a personalidade mais homenageada da história de Cornedo Vicentino: chaves da cidade, cidadão honorário, uma placa comemorativa na Prefeitura, um dia de luto oficial e toque dos sinos quando ele morreu. No sábado da semana que ele faleceu, a comunidade organizou uma missa fúnebre na igreja de Muzzolon. Eu nunca vi tanta gente chorando junta.
Uma nova sede para o Gruppo Alpini
Milionário conhecido pelo engajamento comunitário e pelo coração generoso, nas visitas a Cornedo Vicentino Randon elevou essas características ao extremo. Gostava de participar das festas, brindar com os parentes, ir à missa no domingo, ouvir as bandas marciais. Fez amizade com o Gruppo Alpini de Muzzolon, entidade assistencial que atua como uma espécie de Defesa Civil da região, sempre pronta a auxiliar em todo tipo de intempéries. Fez uma doação em dinheiro para ajudar na construção da nova sede do grupo, que recebeu o nome de Casa Cristóforo Randon. Em entrevista ao Pioneiro por e-mail, o presidente dos Alpini, Christian Roana, destaca que a maior contribuição de Randon foi a união da comunidade em torno do trabalho por uma causa:
– Diante daquele ato, muita gente passou a pensar: “se um empresário do tamanho do Randon, que mora no outro lado do Oceano, decidiu patrocinar este projeto, eu também preciso fazer mesmo”. E assim empresários e lojistas venderam material de construção com grandes descontos, ou simplesmente a preço de custo, sem contar as doações recebidas. Todos trabalharam com muita paixão, entusiasmo e alegria. Chegaram para trabalhar moradores que nunca sequer havíamos visto, pois nunca se sentiram envolvidos em qualquer projeto social da comunidade.
Roana acrescenta que a Casa Cristóforo Randon virou um espaço de convívio social, utilizado diversos dias da semana.
– É um espaço para o jogo de cartas para os idosos, jantares, festas e eventos comunitários, palestras. E virou também, inesperadamente, uma atração turística! A cada mês recebemos a visita de brasileiros que pedem para visitar a casa – exclama.
Ao ser conduzido até o aeroporto de Veneza por Paolo Meneghini em sua última visita à Itália, em novembro de 2017, Randon comentou com o amigo ao se despedir:
– Tenho comigo que vou voltar em alguns meses.
Com a saúde debilitada naqueles que foram os últimos meses de sua vida, Randon nunca mais voltou. Mas para Cornedo Vicentino, que recebeu parte das cinzas do empresário numa das visitas recentes da família, é como se ele nunca tivesse ido embora.
Fim a uma rivalidade
Mais ou menos como Galópolis está para Caxias do Sul, Muzzolon está para Cornedo Vicentino. Um bairro afastado e com vida própria, com pouco mais de mil habitantes, mas uma igreja maior que a Catedral de Caxias. Neste povoado, onde viveu Luigi Cristoforo Randon, uma lápide e um funeral simbólicos foram feitos para homenagear Raul Randon após sua morte, com presença da esposa, Nilva, e das filhas Roseli e Maurien.
Um dos episódios que marcam a forte ligação entre Raul Randon e o povo de Cornedo Vicentino e Muzzolon, contado com orgulho pelos moradores, foi a vez em que as duas bandas marciais superaram a própria rivalidade para tocar juntas na ocasião de uma das visitas do ilustre visitante, em maio de 2017. A sonoridade e o repertório agradaram tanto que Raul decidiu financiar a gravação de um CD para os dois conjuntos, com as mesmas músicas apresentadas naquele dia.
– Foi após a apresentação do filme sobre a sua vida no cinema de Cornedo. Ele reuniu os presidentes e os regentes das duas bandas e disse pra eles: “eu gostaria muito se as bandas gravassem um CD juntas. Eu vou deixar pra vocês o valor para a gravação e a edição do CD. Com o dinheiro das vendas, vocês poderão comprar novos instrumentos, partituras, uniformes ou equipamentos. Certo? Certo! Um aperto de mão e surgiu um novo projeto sociocultural. Infelizmente, o último.
Com ginásio lotado, álbum Made in Italy foi lançado em novembro do ano passado, mesma ocasião das homenagens póstumas no cemitério.
– As bandas nunca haviam feito um projeto juntas. Pelo contrário, se olhavam até com um pouco de rivalidade. Tocando juntas, surgiram novas amizades entre os músicos, a estranheza que havia ficou para trás. Após a morte de Raul Randon, as bandas passaram a ensaiar com ainda mais entusiasmo e paixão, sabendo que teriam a missão de prestar uma homenagem a esse grande homem – comenta Stefania Zarantonello, presidenta da Banda de Muzzolon.