Radicalização nas redes sociais. Falta de diálogo. Corrupção. Tudo isso, por vezes, é tido como algo "normal". Mas não deveria ser, defende Roberto Crema, reitor da Universidade Internacional da Paz (Unipaz). Autor e coautor de mais de 30 livros, Crema, que estará em Caxias do Sul no próximo dia 5 de maio como um dos palestrantes do 2º Congresso Nacional de Espiritualidade, explica que na verdade o que temos aí é uma patologia da normalidade, um desequilíbrio que ele denomina normose.
– Quando no meio no qual vivemos predominam o egocentrismo, a violência, a falta de visão, de escuta e de cuidado, ser normal é adaptar-se a um sistema desequilibrado, desumano e patológico. É o que transcorre nos tempos atuais – diz.
Com formação em Ciências Sociais/Antropologia e em Psicologia, atua há três décadas na Unipaz, que transcende os conceitos de uma instituição tradicional — o foco dessa universidade não se circunscreve às ciências e à razão, e sim busca o diálogo da ciência com a filosofia, a arte e a tradição espiritual.
Diálogo, aliás, é uma palavra-chave para o mundo atual, acredita Crema, que, em Caxias, falará sobre o tema Novos Olhares para a Construção de um Novo Amanhã.
Confira a entrevista que ele concedeu por e-mail.
Pioneiro: No congresso, o senhor vai abordar o tema Novos Olhares para a Construção de um Novo Amanhã. Como seria esse novo amanhã, e quais os olhares necessários para alcançá-lo?
Roberto Crema: Como afirma o poeta Fernando Pessoa, "A vida é o que fazemos dela. Não há viagens, há viajantes. O que vemos não é o que vemos senão o que somos". Mudar o mundo é mudar o olhar. O amanhã é uma construção do agora. O que estamos pensando, falando e fazendo hoje é o que seremos amanhã. Infelizmente, no contexto atual, nosso olhar é educado e modelado para a fragmentação, a dissociação, a desvinculação. Se o apego, identificação ao que é impermanente, é a raiz comum do sofrimento humano, causador do medo e do estresse cotidianos, é interessante perceber que todo apego advém da fantasia da separatividade, de um olhar estreito que separa e exclui. Essa fantasia ilusória encontra-se na fonte das angústias, da competição e exclusão social, da destruição dos ecossistemas.
Qual seria a solução?
Neste sentido, talvez o que mais necessitamos é de um choque de comunhão, o que é inerente a uma espiritualidade autêntica, para mudar nossa visão. Afirmo que, na essência, espiritualidade é amor e, na prática, é solidariedade e serviço ao próximo — o que brota naturalmente de uma consciência de pertencimento e não separatividade. Sobre isso, Einstein mencionava uma espiritualidade cósmica e Capra escreveu um livro que vale pelo seu título: Pertencendo ao Universo. Para que seja possível a sobrevivência com dignidade das nossas novas gerações, é necessária a aliança da ciência com a consciência. Assim a nossa sofisticada tecnologia terá uma orientação e um sentido ético, fundamentado nos valores perenes da nossa espécie.
Em tempos de polarizações e radicalizações, tanto na política quanto em outros setores, é possível uma união da sociedade em prol da construção desse futuro?
Há mais de três décadas afirmo que ninguém transforma ninguém e que ninguém se transforma sozinho; nos transformamos no encontro. De fato, os sintomas crescentes e intensificados de polarizações irracionais e de extremismos agressivos denotam um momento crítico da nossa família humana que pode ser traduzido pela falta de escuta, com base no desencontro crônico com os outros, consigo mesmo, com a natureza e com o mistério que sempre está presente. Para escutar a outra pessoa é necessário que, em certo grau, silenciemos nossa mente, nossos conceitos e preconceitos, para que possa haver um diálogo criativo e renovador. É triste constatar que na sociedade atual brasileira, ocorre um acirramento de julgamentos passionais, de rotulações simplistas, de uma compartimentalização alienada muito perniciosa de nós contra os outros, que representa o naufrágio do diálogo e da compreensão, ou seja, o fracasso do encontro. Diálogo vem da mesma raiz do latim dies, que significa deus — talvez o divino na forma do encontro.
E por que ocorre essa falta de diálogo?
É importante considerar que o desencontro primeiro acontece no nosso interior, entre nossos diversos departamentos psíquicos — razão contra coração, sensação em luta com a intuição, efetividade em atrito com afetividade, a inteligência do masculino em combate com a do feminino —, o que acaba sendo projetado, de forma maciça e intensificada, no palco das relações sociais. Sabemos bem, no universo da psicologia profunda, que o que criticamos e julgamos nos outros é, sobretudo, o que desconhecemos e excluímos em nós mesmos. A harmonia individual encontra-se na base da social e ambiental. Necessitamos criar uma massa crítica de consciência que se expanda do interior para o exterior. Felizmente, assim como o ódio e a intolerância, a paz e o equilíbrio são também contagiantes.
Quais são, aliás, os principais problemas que o senhor identifica na sociedade atual?
Os problemas antes de serem interpessoais são intrapessoais. Cada um de nós simboliza um pedacinho de praça pública. A transformação da sociedade tem início na autotransformação, quando somos capazes de conquistar um pouco de ordem, de equilíbrio, de integridade e de amor no microcosmo que nos foi ofertado pelo Grande Cosmo. É o que afirmavam Carl Gustav Jung, Mahatma Gandhi, Krishnamurti e muitos outros sábios do Ocidente e do Oriente. O ser humano tem sido o problema, e pode ser também a solução.
O senhor é reitor da Unipaz, que tem inclusive uma unidade no RS. Como é o trabalho desenvolvido pela instituição, e no que ele pode contribuir para uma mudança no cenário atual?
A Unipaz é a terceira Universidade da Paz criada no mundo, após a de Tóquio e a de Costa Rica. Com um diferencial: partimos do princípio de que não é com o paradigma que inventou o problema que iremos resolvê-lo. A palavra hebraica para a paz, Shalom, brota da mesma raiz de Shalem, que significa inteireza. Então, há mais de três décadas, desenvolvemos uma educação integral, a partir da concepção de uma ecologia inclusiva, individual, social e ambiental, suportada na abordagem transdisciplinar holística. Compreendemos que tudo o que é inteiro é belo, é saudável, é pacífico e é sagrado. A transdisciplinaridade significa o diálogo da ciência com a filosofia, a arte e a tradição espiritual. Em outras palavras, a aliança da ciência com a consciência. Holística deriva do grego Hólon, que implica a integração do todo e da parte, que possibilidade uma visão global para uma ação lúcida e consciente local. Todos os nossos programas e projetos encontram suporte numa estratégia de integração dialógica, dirigida ao público em geral, para complementar o que nossas academias convencionais, centradas no paradigma do racionalismo científico — necessário, porém esgotado — não são capazes de promover por estarem circunscritas à razão crítica e empírica.
Por quê?
Não é difícil constatar que a razão nem sempre tem razão quando lhe falta os ditames do coração. A partir de nosso projeto mais consagrado, implementado em nossa matriz de Brasília a partir de 1989, a Formação Holística de Base, que visa integrar as quatro funções psíquicas pesquisadas por Jung — o pensamento e o sentimento, a sensação e a intuição —, para engendrar uma quinta função, a do Self, inteligência da inteireza psíquica, a Unipaz irradiou-se para praticamente todo o Brasil e também para a Argentina, Portugal, França e Bélgica. Estamos colaborando concreta e significativamente com a Unesco que, desde 1992, propõe os quatro pilares de uma nova educação transdisciplinar: educar para conhecer, para fazer, para conviver e para Ser. Por outro lado, partimos também do princípio de que paz é fluxo, é processo, é movimento. Como afirma o I Ching, o Livro da Mutação da tradição chinesa, o oposto de paz é estagnação. Onde estivermos estagnados, no corpo, na alma e na consciência, ali teremos perdido a paz, e a saúde. Uma boa metáfora para indicar a paz e o seu oposto, é a da água corrente em contraposição à água estagnada. Paz é mutirão, é bom combate, é a conquista do fluxo de uma inteireza sempre em curso, em permanente marcha.
Entre os conceitos que o senhor trabalha nos seus artigos está o de normose, ou patologia da normalidade. Em que consiste essa patologia?
Eis o grande obstáculo para nossas boas intenções de paz, de justiça e de saúde integral: a normose. Jean-Yves Leloup, Pierre Weil e eu desenvolvimentos esse conceito no livro Normose, a Patologia da Normalidade, para nos referirmos a uma anomalia da mediocridade, de uma normalidade doentia. Na minha visão, há dois grandes fundamentos da normose: o sistêmico e o evolutivo. O axioma sistêmico implica que a normose nem sempre existiu e nem sempre existirá. Ela surge de uma degeneração sistêmica: quando no meio no qual vivemos e convivemos predomina o egocentrismo, a violência, a falta de visão, de escuta e de cuidado, quando a corrupção impera. Nesse caso, ser normal é adaptar-se a um sistema desequilibrado, desumano e patológico. É o que transcorre claramente nos tempos atuais. Então, a pessoa saudável é a desajustada que sofre em algum grau de uma indignação lúcida, de um desespero sóbrio, e faz alguma coisa para mudar o contexto no qual habita. Alguns dizem que, do ponto de vista da consciência, vivemos a idade de ferro: a do esquecimento da integridade e da grandeza do projeto humano. Nesse sentido o normótico é alguém que faz pequenas as grandes coisas, que sempre está encapsulado na bolha do ego, que se expressa por corporativismos mesquinhos e uma irresponsabilidade crônica frente ao bem comum. Enquanto a pessoa autenticamente saudável é capaz de fazer grandes as pequenas coisas, introduzindo nas suas ações a consciência, a corresponsabilidade, o respeito e o amor compassivo.
Poderia citar exemplos de como a normose se manifesta?
Uma normose muito estridente que testemunhamos é a da corrupção. As pessoas envolvidas dizem: "Mas todo mundo faz assim". Eis uma descrição precisa dessa anomalia da normalidade. Gosto de confiar que estamos presenciando, no Brasil, o início de um processo de cura dessa normose perversa e degenerativa para o corpo social. As pessoas despertam, ocupam as ruas e bradam que não suportam mais tanta insanidade, que quem a comete não as representam. E mudanças acontecem, bem sabemos. Longe de mim a ingenuidade de crer que a corrupção desaparecerá; ela deixará de ser normose para ser um crime, como já ocorreu com a normose da escravidão que era aceita dominantemente nas instituições em geral. Se alguém pratica a escravidão hoje, sabe que se trata de um crime passível de punição severa. Simples assim.
E o outro fundamento da normose?
O outro fundamento é o evolutivo: o normótico é alguém que sofre de uma estagnação no seu desenvolvimento humano, por falta de investimento no potencial de saúde e de plenitude inerente a todo ser humano, nas dimensões não apenas material, mas também psíquica e consciencial. Como afirmava Confúcio há cerca de 2500 anos: o que nos distingue de outras espécies é o inacabamento, a incompletude. É o que traduzo quando afirmo que não nascemos humanos, nós nos fazemos humanos investindo na semente de uma plenitude possível em nosso interior, e fazendo render os talentos que o Mistério nos confiou sob medida.
Outro conceito interessante dos seus escritos é o "complexo de Jonas", sobre o temor de abandonar uma situação confortável e apostar na mudança. Como esse complexo se manifesta, e como pode ser combatido?
Esse complexo refere-se particularmente à questão evolutiva inerente à normose. Jonas é um arquétipo que consta do Velho Testamento que, em hebraico, significa pomba das asas podadas. Foi Abraham Maslow que denominou de complexo de Jonas a um tipo de resistência que impede o processo de pleno desenvolvimento e de autorrealização individual. Jean-Yves Leloup desenvolveu essa perspectiva no livro Caminhos da Realização. Eis uma breve síntese deste interessante e sábio mito bíblico: Jonas foi despertado com uma voz que lhe convocou a ir para Nínive, a grande cidade dos inimigos dos hebreus, para converter esse povo que tinha se desviado das trilhas da sabedoria e do amor, que se entregava a todos os tipos de iniquidades, de injustiças e de desumanidades — o que ilustra a grande atualidade desse texto simbólico. Com medo da desafiadora tarefa, ele foge para Társis. Então surge uma tempestade, que simboliza que quando fugimos da senda da vocação, atraímos sintomas e infortúnios não só para nós, mas também para os que estão ao nosso lado. Jonas é despertado pelo capitão do navio, que representa a consciência humana. Ele reconhece que está fugindo da sua missão, a sorte é tirada, e finalmente Jonas é jogado nas águas do oceano e engolido pelo grande peixe, onde permanece até converter-se à sua tarefa profética. Assim, Jonas representa o medo normótico da vastidão do potencial humano no interior de cada um de nós, a força de resistência frente à tarefa imperativa do florescimento humano. Necessitamos transcender os trilhos normóticos, confortáveis e previsíveis, para trilhas que não existem, e que serão inventadas pelos nossos próprios pés nos caminhos que tem coração.
Agende-se
:: O quê: 2º Congresso Nacional de Espiritualidade.
:: Quando: dia 5 de maio, das 8h às 18h30min.
:: Onde: no UCS Teatro, em Caxias do Sul.
:: Quanto: R$ 229, à venda nas lojas Drops de Menta e no site sympla.com.br (há taxas).