Ondjaki gosta de inventar palavras. Assim, não estranhe ao deparar com termos como "devagaroso" ou "de repentemente" ao ler um dos mais de 20 livros desse escritor angolano, autor de obras como Os da Minha Rua, AvóDezanove e o Segredo do Soviético, Quantas Madrugadas tem a Noite e A Bicicleta que tinha Bigodes.
— Eu quero escrever também para sonhar, e quero poder levar a língua a sonhar comigo — diz Ondjaki, que visitou Caxias do Sul no final de semana para a 33ª Feira do Livro.
As histórias do autor (ou estórias, como ele prefere) trazem consigo um forte elemento identitário, com várias tramas se passando na sua Luanda natal. Aí entra, mais uma vez, o componente da linguagem, com o português mais próximo ao de Portugal, a transcrição de uma fala por vezes coloquial, as palavras que se unem (AvóAgnette, VendedorDeGasolina), outras palavras de origem africana (candengue, kota, muadiê) — explicadas em glossários ao fim dos livros.
Leia também:
3por4: Violonista Leonel Costa lança seu primeiro álbum autoral nesta segunda, na Feira do Livro de Caxias
Autora de 60 livros, escritora Marina Colasanti participou da 33ª Feira do Livro
Revoluções pessoais
Outro ingrediente que tempera as tramas de Ondjaki é a memória, tornando a leitura um mergulho saboroso e poético em tempos passados de Angola, essa terra-irmã do Brasil ainda tão pouco conhecida por nós. Em AvóDezanove, por exemplo, somos transportados a um país recém-independente, em que crianças brincam na rua enquanto soldados soviéticos constroem ali perto um imponente e misterioso mausoléu.
O escritor, que estreou na literatura em 2000 com o volume de poesias actu sanguíneu, é autor também de romances, contos, obras infantis e juvenis, além de teatro. Suas obras já foram traduzidas e publicadas na Alemanha, Espanha, Itália, Inglaterra, França, Suíça, Suécia, Croácia, Polônia, Cuba, Canadá, México, Argentina, Uruguai e Sérvia. Em pouco mais de uma década e meia de carreira, acumula ainda diversos prêmios, entre eles um Jabuti na categoria juvenil, conquistado em 2010 por AvóDezanove, e o Prêmio José Saramago, em 2013, pelo romance Os Transparentes.
Confira a entrevista que ele concedeu ao Pioneiro:
Pioneiro: Você veio a Caxias para participar, na Feira do Livro, de uma mesa sobre a literatura como resistência política e filosófica. Em que medida você vê a sua própria literatura enquanto elemento dessa resistência?
Ondjaki: Penso que toda a literatura tem nela algo de resistência, de sonho e de renovação. Não a minha especificamente, mas a do mundo. Mas os livros, os de ficção, chegam a partir de um outro lugar, que é o de contar uma estória. E essa é normalmente a minha prioridade, a estória. Só depois sei que caminhos paralelos o livro vai ter. Não parto da ideia da resistência, parto de uma ideia de ficção e de sonho. O resto só sei no fim. Ou nunca sei.
Embora você tenha estudado em Portugal e outros países e atualmente resida no Brasil, Angola permanece bem forte na sua escrita. Qual a importância desse elemento identitário?
Eu ou escrevo uma ficção baseada em factos e pessoas angolanas, ou trato de pessoas em geral, normalmente nos contos são essas pessoas do mundo que me aparecem. Mas acho que essa matriz cultural minha, independentemente das viagens, reaparece sempre na escrita. Penso eu que devido a um mapa afectivo (que também é cultural) que não se desprende de mim. Não creio que será sempre assim, mas por enquanto tem sido. Quase toda a minha escrita passa por Angola ou por Luanda.
A memória parece ser outro ingrediente sempre presente nos seus livros. Na sua opinião, qual o papel dela na literatura em geral?
Eu não sei se escrevemos para lembrar, ou se para inscrever no futuro aquilo que vivemos, ou aquilo que pensamos ter vivido. A memória, no sentido autobiográfico, é sempre um poço profundo de coisas para a literatura. Nalguns livros meus peguei nisso como um exercício intencional de usar memórias quase autobiográficas para fazer literatura. Isso porque há episódios reais, da vida, que estão prontos para ser literários também.
Você também é sociólogo e doutor em estudos africanos. No que isso influencia sua escrita?
Eu sou apenas licenciado em Sociologia, não sou uma pessoa interessada em aprofundar os meus estudos nessa área. Creio que a Sociologia me deu algumas ferramentas de análise e algumas lentes para ver a sociedade, mas mais como pessoa do que como escritor.
Angola e Brasil compartilham a língua portuguesa, e, desde 2010, está em vigor o tratado ortográfico que procurou unificar o idioma nos vários países que o utilizam. Mesmo assim, é comum quem lê seus livros deparar com palavras incomuns por aqui. Será possível (e aconselhável) realmente padronizar a língua?
O acordo ortográfico sempre existiu. O que houve foi apenas um "novo" acordo, com introdução de novas marcas gráficas, ou a remoção de outras. Isso nada tem a ver com as palavras em si, tem a ver com o modo de as escrevermos. As palavras que considera "incomuns" aqui, são por vezes normais em Angola ou Portugal. O mesmo se passa com qualquer regionalismo brasileiro lido por não brasileiros. Pessoalmente, não creio que seja possível padronizar esta Língua falada e actualizada por sete países. Nem vejo interesse nisso. Mas o acordo ortográfico dificilmente tocaria na ficção de cada um dos nossos países. Felizmente.
Falando em língua, você gosta de criar novas palavras, ou usá-las de uma forma não usual. Sempre foi assim na sua escrita? E como surgiu essa característica?
Alguns livros usam mais essa "liberdade" do que outros. Isso tem a ver com o facto de eu trabalhar muito a coloquialidade de Luanda. E alguns personagens são também narradores principais de algumas obras. Eu gosto de ser livre com a Língua Portuguesa, lembrando sempre os ensinamentos do mestre Manoel de Barros quando referiu que tínhamos que "desacostumar as palavras". Isso possivelmente significa tratar a língua como barro, e não como pedra ou estátua. A minha escrita, as palavras que uso, seguem ideias literárias e muitas vezes os imprevistos rumos do afecto. Eu quero escrever também para sonhar, e quero poder levar a língua a sonhar comigo. Ou deixar que um sonho aconteça entre mim e a língua que falo e que uso para escrever. Não outra explicação para isso que não seja o campo da liberdade. Não pretendo fazer restrições nas minhas linguagens literárias, nem deixar que as palavras padeçam de aborrecimento. Mas isso é apenas um estilo ou uma opção. E cada um "anda" com os instrumentos que acumulou e que valoriza.
O que há em comum, além do idioma, entre a cultura de Angola e a cultura do Brasil?
São dois países muito vastos, sobretudo o Brasil, com tantos "brasis" dentro dele mesmo. Penso é que, felizmente, desde sempre, estes dois países se consideram irmãos. E isso deve ser trabalhado através de laços culturais que nos levem a esse ponto cardeal chamado futuro.
Quais referências culturais e, principalmente, literárias, você tem no que diz respeito ao Brasil?
O que eu tenho é uma profunda admiração e respeito pela cultura brasileira. Desde as tradições, à música, passando pela literatura, antropologia, sociologia, pintura e toda essa força cultural que o Brasil manifesta com tanto fulgor. O que mais lamento é o modo como, em quase todos os campos, culturais ou políticos, o cidadão negro e, portanto, a sua arte, seja tão pouco valorizada e potenciada. Isto, sim, é um facto triste que o Brasil tem que repensar e mudar.
E quais nomes da literatura angolana, além do seu, você indicaria para os leitores daqui?
Tantos... O Brasil conhece um fragmento muito ínfimo da literatura que se faz em todos os países africanos de língua oficial portuguesa. Desde os que já faleceram, até aos que ainda vivem, há muita literatura para ser descoberta: António Jacinto, Viriato da Cruz, Agostinho Neto, Ndunduma, Henrique Abranches, Arlindo Barbeitos, Uanhenga Xitu, Boaventura Cardoso, Paula Tavares, Ruy Duarte de Carvalho, Carlos Ferreira "Cassé", Nok Nogueira, Lopito Feijó, João Maimona, José Luís Mendonça. Isto para referir alguns angolanos. Faltam tantos. Tantos.
Você já escreveu romances, contos, poesias, livro infantil, livro juvenil, teatro, já recebeu vários prêmios e foi traduzido em vários países. O que ainda falta conquistar?
Falta-me viver o dia em que a desigualdade social não seja tão acentuada no meu país. Falta-me ver o dia em que a saúde, a educação e a cultura sejam devidamente valorizadas no meu país. Falta-me dormir descansado pensando que o estado da democracia em Angola atingiu pelo menos o nível em que se respeite mais as regras da própria Democracia que os governos angolanos apregoam. E falta-me conquistar a minha paz interior.