Para o sociólogo italiano Domenico de Masi, a economia baseada na doação é melhor do que a baseada na concorrência. E despertar para essa realidade é o principal desafio que a sociedade atual deve encarar ao mirar um futuro marcado por transformações demográficas, ecológicas, tecnológicas e econômicas que impactam diretamente nossas vidas, em especial o nosso tempo livre. Aos 79 anos, cita Gilberto Freyre para argumentar que a mudança é o motor da evolução:
— Se dependesse de mim, não seria nunca maduro, nem no estilo, nem nas ideias, mas seria sempre verde, sempre incompleto, sempre experimental.
Na próxima terça-feira, o autor de O Ócio Criativo (1997) estará em Caxias do Sul para palestrar no Simpósio Universidade do Século XXI: Olhar o Presente, Criar o Futuro. Em entrevista concedida por e-mail ao Pioneiro, De Masi antecipou alguns pontos que irá abordar em sua fala e refletiu sobre a atual realidade do Brasil, país que descreveu como modelo de sociedade ideal em O Futuro Chegou (2013). Para o italiano, ainda somos o país mais tolerante do mundo. Entenda por que nas respostas abaixo:
Almanaque: Estudiosos como Gilles Lipovestiky e Byung-Chul Han se aliam ao seu pensamento ao considerar que vivemos numa sociedade que precisa redescobrir o valor do ócio, estimulada que é a produzir sempre mais e a comprar discursos positivos que fazem crer que tudo está ao alcance. Quais os riscos que a autocobrança excessiva apresenta?
Domenico De Masi: Em 2030, cada jovem de 20 anos terá pela frente aproximadamente 580 mil horas de vida. Para funcionários de cargos executivos, o trabalho ocupará não mais que 60 mil horas. Outras 200 mil horas serão dedicadas ao cuidado com o corpo (sono, saúde, etc.), 120 mil horas serão investidas na formação. Teremos à disposição 200 mil horas de tempo livre, correspondentes a 8,3 mil dias e a 23 anos. Como ocupar tantas horas fora do trabalho? Como evitar o tédio e a depressão? Como progredir intelectualmente? Aumentará a violência ou a paz social? A diferença será determinada pelo nosso nível de cultura e de curiosidade intelectual. Devemos, portanto, nos preparar para o tempo livre, desde já, mais do que costumamos nos preparar para o tempo de trabalho.
Já são 17 anos desde a publicação, no Brasil, de O Ócio Criativo. Que avaliação o senhor faz hoje das ideias desenvolvidas no livro? Como elas se encaixam nessa primeira década do século 21?
Os anos seguintes ao da publicação do livro O Ócio Criativo demonstraram que as minhas previsões estavam certas. As tecnologias incrementaram sua potência e aceleraram sua inovação, tornaram-se aptas a desenvolver muitas tarefas executivas, cansativas, perigosas, chatas, deixando para os seres humanos principalmente as atividades de caráter intelectual e criativo. Essas atividades pós-industriais, diferentemente do que acontece quando se trabalha numa linha de montagem industrial, podem ser desenvolvidas em forma de ócio criativo. Ou seja, o trabalhador, enquanto trabalha, aprende e se diverte.
Devemos nos preocupar com o fim do emprego?
Máquinas digitais, diversamente das máquinas anteriores, mecânicas e eletromecânicas, mais destroem do que criam empregos. Em 1.900, a população italiana era de 40 milhões e trabalhava um total de 70 bilhões de horas. Em 2016, era de 61 milhões e trabalhou 40 bilhões de horas, mas produziu 23 vezes mais. Isso quer dizer que estamos aprendendo rapidamente a produzir mais bens e mais serviços com menos trabalho humano. Diminui a quantidade de trabalho necessária para produzir todas as coisas de que precisamos. E, no trabalho que resta, a quantidade de tarefas operárias e administrativas também diminui, enquanto aumenta a quantidade de atividades criativas (profissionais liberais, artistas, cientistas, etc.). Em 2030, graças ao progresso tecnológico e à globalização, 25% do mercado de trabalho será composto por operários, 25% por trabalhadores com funções administrativas e 50% por funcionários que desempenham atividades criativas. Conforme diminui a quantidade de trabalho necessário, é preciso redistribuir o trabalho que restar, de forma que todos tenham um pouco a fazer. Já em 1930, John Maynard Keynes tinha entendido bem este conceito e, referindo-se às futuras gerações — aquelas que entrarão no mercado de trabalho em 2030 — escreveu: "O pouco trabalho que ainda reste, seja distribuído entre o maior número de pessoas possível. Turnos de três horas e jornadas de trabalho semanais de quinze horas podem solucionar o problema por um bom período de tempo."
Do que depende a felicidade humana atualmente?
Keynes também escreveu: "Pela primeira vez, desde a sua criação, o homem estará diante de seu verdadeiro e constante problema: como empregar o tempo livre que as ciências e os juros compostos lhe granjearam, para viver bem, de forma agradável e sábia." Logo, a felicidade humana está em desenvolver um trabalho criativo; em viver o seu tempo livre de forma agradável e sábia; em fazer feliz aqueles que o rodeiam. Karl Marx diz: "A experiência aclama como mais feliz o homem que fez o maior número de pessoas felizes... Se escolhermos uma posição na vida na qual pudermos quase que inteiramente trabalhar para a humanidade, nenhum fardo poderá nos derrubar, porque são sacrifícios para o benefício de todos; então não sentiremos uma alegria mesquinha, limitada, egoísta, mas nossa felicidade pertencerá a milhões de pessoas, nossas ações viverão em silêncio, mas para sempre".
O Brasil atravessa uma grave crise política, com suas instituições passando por período de grande descrédito e a população cada vez mais polarizada. É perigoso acreditar no surgimento de "salvadores da pátria" neste momento? Qual o caminho para a retomada de um país mais harmônico e de menos extremos como o de uma parcela da população defendendo a volta do regime militar?
O Brasil tem sobretudo quatro problemas, interligados entre si: a grande desigualdade social, o analfabetismo, a violência, a corrupção. Precisa de um governo capaz de implementar a solução para todos eles. Um novo regime militar, por outro lado, tornaria esses problemas mais graves e menos passíveis de resolução. O regime militar representa uma solução infantil, irracional, suicida.
Como chegamos a tamanha desorientação atual e que saída o senhor vê para ela?
Como procurei demonstrar em O Futuro Chegou, todos os países do mundo estão desorientados porque não possuem uma referência sobre a qual moldar sua sociedade. De fato, a nossa sociedade pós-industrial, diversamente de muitas sociedades precedentes, não nasceu com base em um modelo preexistente, já concluído e compartilhado. A sociedade medieval, por exemplo, nasceu do modelo cristão que tinha a cidade do homem inspirada na cidade de Deus. No Século 18, em plena monarquia absolutista e em plena inquisição, alguns poucos intelectuais iluministas ousaram elaborar e propor um modelo de sociedade "burguesa", baseada na razão, na liberdade, no laicismo e na igualdade, enfrentando perseguições, a prisão e, em muitos casos, até a morte. As sociais-democracias nasceram com base nos modelos antecipados por socialistas como Owen e Bernstein. A sociedade soviética nasceu nos moldes precedentemente concebidos por Marx, Engels e Lenin. No último século, muitos países imitaram o modelo americano, mas agora que este modelo está em crise, percebe-se a falta de um novo modelo de vida, capaz de indicar meta e percurso até um progresso que hoje, sem regras e finalidades, fica sem sentido. Mas quem deve elaborar esse novo modelo? Por onde começar? O Brasil pode oferecer uma grande contribuição a esse modelo, graças ao seu humanismo individual feito de vitalidade, acolhimento, sensualidade e alegria de viver.
As redes sociais parecem favorecer a vida em bolhas ideológicas, em que os conteúdos escolhidos para aparecer na "linha do tempo" estão embalados dentro de conceitos que o usuário concorda, com cada vez menos espaço para o contraditório. De que forma isso contribui para uma sociedade que retrocede em nível de tolerância?
Mesmo que o Brasil esteja retrocedendo em seu nível de tolerância, representa mesmo assim, ainda hoje, o país mais tolerante do mundo. Na Europa, durante os últimos 500 anos, enfrentamos dezenas de guerras fratricidas entre as várias nações que compõem esse Continente. No Brasil, por outro lado, houve uma única guerra, com um de seus 11 países limítrofes: o Paraguai. Além disso, no Brasil convivem pacificamente muitas dezenas de etnias, enquanto nos Estados Unidos e na Europa existe um grande racismo.
Qual é a importância de relacionar passado e presente?
É importante relacionar o presente com o passado (a memória) e com o futuro (o desenvolvimento)
O escritor Luis Fernando Verissimo declarou recentemente que o brasileiro está "mudando de caráter" e se transformando no "brasileiro selvagem", tornando-se mais intolerante devido ao desencanto com a política. O senhor concorda que haja essa relação entre desencantamento e crescimento do sentimento de intolerância?
Se o brasileiro mudar seu caráter, todo o Brasil e todo o mundo perderão um dos recursos humanos mais preciosos. O Brasil, como a Itália, está no meio da travessia entre a sociedade industrial que está morrendo, e a sociedade pós-industrial que está nascendo. A sociedade industrial foi caracterizada pelo consumismo, pelo liberalismo econômico, pela competitividade. A sociedade pós-industrial poderia ser caracterizada pela abundância, pela convivialidade e pela beleza. Cabe ao brasileiro decidir se quer se tornar "selvagem" ou "feliz".
A tecnologia ajudou ou prejudicou o homem e as relações humanas?
A tecnologia atingiu abismos terríveis como Hiroshima e ápices sublimes como a internet.
Quais são os grandes desafios das próximas décadas?
Aprendemos a produzir a riqueza, mas não aprendemos a distribuí-la. Portanto, o grande desafio que temos é o de chegar a um novo, grande pacto social entre homens e mulheres, entre jovens e idosos, entre ricos e pobres, entre trabalhadores e desempregados, entre analógicos e digitais, para redistribuir de forma equitativa a riqueza, o trabalho, o poder, o saber, as oportunidades e as tutelas.
Simpósio
De Masi é a grande atração do Simpósio Universidade do Século XXI, que ocorre terça e quarta-feira, no UCS Teatro. As inscrições podem ser feitas em http://bit.ly/2feKiiG. O valor de R$ 120. Funcionários e professores da UCS pagam R$ 72.
Em Caxias
Na terça pela manhã, De Masi receberá o título de Doutor Honoris Causa concedido pela Universidade de Caxias do Sul.
A tecnologia atingiu abismos terríveis como Hiroshima e ápices sublimes como a internet