Tenho aqui comigo a ingênua convicção de que fazer comida é um ato de amor. Sei lá por qual razão. Alguma coisa me diz que botar-se às panelas para cozinhar evoca sentimentos ancestrais protagonizados por mães, por avós e mães de avós, em eras remotas nas quais manusear panelas, conchas e mêscolas representava a habilidade de levar à mesa, para os entes queridos, os sabores dos alimentos preparados com a pureza do coração. Para mim, permanece viva até hoje a percepção de que cozinhar é uma atividade feliz. Porém...Porém, pois é. Antes do "porém", mais alguns "senões". Lembro de minha avó materna, a dona Ilse, que cozinhava para toda a família como quem ama.
Leitora contumaz e dona de casa aplicada, dona Ilse reinava na cozinha com a propriedade que as avós adquirem frente ao tempo de atividade junto aos fogões criados para alimentar proles ao redor do planeta. Ela fazia guisados de moranga como ninguém, galinhadas como só ela, feijão e bifes únicos. Vendia o peixe com frases marqueteiras como "não é porque eu fiz, mas está delicioso" e "nunca fiz tão bom", com as quais concordávamos em silencioso uníssono, metendo bocas adentro os nacos de sua competência gastronômica.O mesmo se dava com minha avó paterna, a dona Hermine.
Delicada e elegante, dona Hermine produzia saladas de batata inimitáveis, que faziam sucesso nos churrascos de domingo pilotados por meu avô. Ela também moldava sonhos na Páscoa e esculpia tortas alemãs como a apfelstrudel, encravando marcas indeléveis em nossas lembranças gustativas. Ofertavam elas a nós, familiares, os frutos de seus atos amorosos. E saboreávamos aquilo tudo, digerindo lembranças. Minha mãe e minha sogra também cozinham com o mesmo amor herdado.Porém... É embalado por esse tipo de elo afetivo que passeio pelos atuais programas de competição gastronômica, prolíficos nas grades dos canais de tevê, e me decepciono. O que vejo ali é desaforo, agressividade e humilhação pautando relações de gastronomia, onde o fazer de um prato deveria ser temperado somente por emoções como prazer, compartilhamento, alegria e estética. Mas, não.
O chef, que tudo sabe, precisa escrachar o neófito, a serviço da audiência. Que tipo de audiência? A de quem vibra ao ver alguém ser espezinhado pelo outro, que sabe mais? O ideal não seria esperar que o detentor do saber ensinasse ao aprendiz com generosidade e acolhimento? Ah, não; eu, fora. Não assisto. É azedume demais. Desligo a tevê e vou para as panelas, orientado apenas por doces lembranças ancestrais. Para mim, esse ainda é o melhor tempero.