Os quase 30 anos de dedicação aos livros, 20 deles na Biblioteca Municipal Dr. Demetrio Niederauer, foram essenciais para a escolha da bibliotecária Maria Nair Sodré Monteiro da Cruz, 62 anos, ser o nome escolhido – por unanimidade – como homenageada da 33ª Feira do Livro de Caxias do Sul, que ocorre de 29 de setembro a 15 de outubro. O título de Amiga do Livro, denominação que passou a ser dada à pessoa homenageada, assenta perfeitamente em Maria Nair, embora ela própria tenha se espantado com a homenagem:
– Até então, eu pensava que os livros é que eram meus amigos – diz, entre gargalhadas.
Assim como a paixão pela leitura, aliás, o riso é outra característica dessa bibliotecária que enveredou na profissão por acaso, mas encontrou-se entre as estantes. Após formar-se em Psicologia, atuou um ano nessa área, fazendo seleção para empresas e orientação vocacional. O descaso para com suas orientações deixou-a frustrada, e Maria Nair tomou uma decisão radical: largou a clínica e voltou à universidade. Chegou a pensar em fazer História, mas acabou optando pela Biblioteconomia:
– Eu pensei, em Biblioteconomia tenho acesso a livros de arqueologia, de arquitetura, de psiquiatria, a tudo aquilo que eu gosto, que eu quero, que me interessa, e também tenho a possibilidade de encontrar as pessoas mais diferentes possíveis no exercício da profissão. Eu me encontrei no curso, acho que foi a melhor coisa que eu podia ter feito – define.
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Tudo isso aconteceu entre as cidades pernambucanas de Recife, onde nasceu, e Olinda, onde passou a infância e juventude. O que a trouxe a Caxias foi outro acaso: estava se formando, em 1988, quando veio ao Sul participar de um encontro de bibliotecários em Porto Alegre. Lá, soube de uma vaga na biblioteca da Universidade de Caxias do Sul, candidatou-se e acabou ficando. Em 1992 ingressou na então Secretaria Municipal de Educação e Cultura (Smec), e em 1997, na Biblioteca Municipal. Seu ciclo de amizades na região surgiu a partir do trabalho nessas bibliotecas, e sua vida gira em torno dos livros:
– Ou estou consertando um livro, evitando que ele vá para o lixo, ou procurando uma pessoa para ler uma obra interessante. Quando encontro um livro que eu gosto, passo adiante, ofereço para outras pessoas, comento... Então, eu sou amiga do livro, sim.
Confira trechos da entrevista:
Como começou sua relação com os livros?
Maria Nair: Ela é bem anterior ao curso de Biblioteconomia. Não passa tanto pela escola, porque eu estudei numa escola em que a biblioteca era um espaço fechado, ninguém tinha acesso. Eu cheguei a me tornar Filha de Maria, entrei na ordem das Filhas de Maria, porque as reuniões aconteciam no espaço da biblioteca do colégio, mas não resolveu muita coisa, porque os livros ficavam todos fechados em estantes de vidro. Mas minha minha mãe e meus avós maternos gostavam muito de ler. Meu avô tinha uma venda de secos e molhados, e pendurava revistas num cordão perto da porta. Quando eu ia na venda, eu pegava para ler, ou ele me dava essas revistas. Eu me lembro de uma ocasião em que eu estava na casa da minha tia, em Olinda, e fugi de lá, e a única coisa que eu levei comigo foi uma maleta com revistinhas dentro. Ainda tenho livrinhos que a minha mãe me deu quando eu tinha seis ou sete anos. Na escola eu não tinha incentivo para ler, mas em casa, as pessoas me davam livros. E como eu era míope e não usava óculos, tinha dificuldade de lidar com coisas do exterior, brincar na rua. Preferia um mundo mais fechadinho, e esse mundo eu encontrei nos livros. O livro era meu amigo porque supria certas necessidades minhas, me dava aconchego, proteção. Eles me faziam companhia, me levavam para lugares que eu queria ver, viajei o Brasil inteiro lendo, conheci um monte de gente lendo.
Quais livros você recorda desse período?
Tinha O Tesouro da Juventude, O Mundo da Criança, a coleção infantil do Monteiro Lobato... Tem duas coleções que meu pai comprou da Editora Globo, fantásticas. Uma era a Tapete Mágico, com volumes os mais diferente possíveis, tinha um livro que era Vidas Ilustres, eu li e reli não sei quantas vezes. Era basicamente biografias, mas era muito interessantes a forma como foi montado. O autor escolhia uma pessoa, por exemplo, Erasmus de Roterdã, e pensava como ele era, como seria se a gente o encontrasse para um jantar. Eu me deliciava lendo isso, imaginando não só as pessoas, mas o que eles comiam, que músicas ouviam, o que vestiam. E tinha outra coleção, Imagens e Paisagens do Brasil, cada volume era sobre um Estado, incluindo desde os primeiros textos daqueles naturalistas que vieram em 1500, 1600, até textos da literatura da década de 1960. Foi assim que eu conheci o Rio Grande do Sul, lendo essa coleção. Li a Coleção Cor-de-Rosa da Biblioteca das Moças, que eram os livros que a minha avó tinha, então foi por aí que eu comecei meu apego pela leitura.
Você também é fã de literatura policial...
Foi por outros acasos que acabei enveredando pelo romance policial. Fui para o casamento de uma prima, que teve de ser adiado por três horas porque esqueceram do buquê e da grinalda da noiva e tiveram de buscar noutra cidade. Nessas três horas eu li O Homem do Terno Marrom, da Agatha Christie, que era da tia da noiva, minha tia também. Devorei, e a partir dali comecei a ler toda a Agatha Christie, Sherlock Holmes, Simenon e por aí fora foi. Na realidade o primeiro conto policial que eu li foi nas aulas de inglês instrumental, no curso de Psicologia, em 1974. O Irmão Vicente, que era o professor, pegou O Barril do Amontilado, do Edgar Allan Poe, em inglês, e deu pra gente ler. Logo depois disso, aconteceu o casamento, e a Agatha Christie... Essa é uma paixão que ainda permanece, estou sempre atrás de um autor novo para ler. Isso faz uns 40 anos, e policial ainda é meu gênero preferido.
Isso foi ainda em Pernambuco?
Sim. Na época eu era noiva, o noivo não era muito de ler, mas ele passava numa livraria que tinha lá, chamada Livro Sete, e pedia assim, "Quais são os livros novos da Agatha Christie que chegaram?", e levava para mim de presente. Quando a minha filha nasceu, ele me trouxe um pacote, devia ter uns 20 e poucos livros, Agatha Christie, E o Vento Levou, e tudo mais o que sugeriram pra ele. "Como você vai ficar alguns meses em casa, sem poder fazer trabalhar, trouxe livros para você ler". Em 15 dias eu devorei tudo, volta para livraria que eu quero mais... (risos). A nenê dormia, eu ia ler. Como presente de nascimento da minha filha, ganhei livros. Eu gostei.
E o que você tem lido atualmente?
Tem coisas muito boas, estou sempre lendo, tem uma pilha de livros ao lado de minha cama. Eu leio muito romance policial, e agora estou lendo A Outra Face dos Mucker, não lembro o autor. Eu tinha lido Videiras de Cristal, peguei esse para ter outra visão lá do episódio do Morro do Ferrabrás.
Como tem sido seu envolvimento com a questão do incentivo à leitura?
Quando eu estava trabalhando na universidade e, simultaneamente, na Smec, eu conheci uma professora que era orientadora das bibliotecas escolares, a Flávia Ramos. Ela estava fazendo mestrado em Porto Alegre e a orientadora dela a desafiou a trazer o Proler, o Programa Nacional de Incentivo à Leitura, da Biblioteca Nacional, para Caxias do Sul. Ela chegou na secretaria, conversou comigo e começamos a trabalhar nisso juntas. Trazer o Proler para Caxias do Sul foi uma loucura fantástica, que deu certo. E a gente organizou também cursos para as professoras que trabalhavam nas bibliotecas. Depois eu vim para a Biblioteca Pública e comecei a trabalhar com a Feira do Livro, o Concurso Anual Literário... O que eu acompanho desde o início, é o Proler. A Feira do Livro, é desde 1997 que eu me envolvo. E tem a biblioteca, quando eu entrei a biblioteca estava comemorando 50 anos, acompanhei os 60 e agora ela está completando 70 anos.
Com toda essa experiência, como você vê a qualidade da produção literária caxiense?
O que tu achas, com os prêmios que os escritores de Caxias têm recebido? O Amora (de Natalia Borges Polesso), mas não só o Amora, muitos outros foram premiados. E temos os livros do Paulo Ribeiro, do Marco de Menezes, do Dinarte (de Borba e Albuquerque), do Paviani, do Pozenato, e eu estou sendo injusta, porque não estou lembrando outros nomes. Eu acho que Caxias tem muita gente boa escrevendo. O que me surpreende é que a cada ano surge um autor novo. Lógico, alguns a gente percebe ainda um pouco para amadurecer, às vezes num trecho de um livro a personagem foi chamada por um nome, e em outro, por outro, mas são coisas mínimas, no todo isso não estraga a qualidade do texto. Eu leio muito, mas só falei com dois autores em toda a minha vida a respeito da obra deles. Um foi o português Richard Zimler, que escreveu O último cabalista de Lisboa; terminei esse livro, mexi e remexi na internet, achei o número e liguei para a casa dele em Portugal, pois fiquei impactada com a obra. O outro autor para quem eu telefonei após terminar o livro foi o Gustavo Guertler (atualmente editor da Belas-Letras), pois eu tinha de dizer a ele o quanto tinha amado seu livro A Sombra das Manhãs. Acho que isso diz a qualidade dos autores caxienses...
Qual a sua melhor lembrança da Feira?
Teve um ano que eu sabia que o Affonso Romano de Sant'Anna viria para a Feira, eu esperava ele e a Marina Colasanti em um determinado dia. Eu não sabia que eles iam chegar na véspera, ia saindo do café, abri a porta, e quando eu levantei a cabeça para ver quem ia entrando, era o Affonso. Eu deixei ele e a Marina entrarem e me sentei ali, junto a um monumento, e chorava desconsoladamente. Não era por conta do Affonso poeta que eu estava chorando, a emoção de ter esbarrado nele era pelo Affonso que foi diretor da Biblioteca Nacional, em cuja gestão surgiu o Proler, que comprou a briga da Eliana Yunes quando ela disse que o Proler tinha de ser dentro das normas e objetivos que tinham estabelecidos e não dentro de escolas, porque a leitura não era para estar restrita à escola, ela tinha de acontecer na escola, mas em todos os outros lugares também, onde se pudesse falar de livros, tinha de se falar de livros. Eu imaginava que fosse ficar impactada por conhecer a Marina, porque ela tem contos maravilhosos, que depois que você lê você nunca mais é a mesma pessoa, mas tive toda essa reação histérica de fã apaixonada com o Affonso. Só consegui falar com ele no dia seguinte, e deu trabalho criar coragem.
Dois anos atrás, quando surgiu a ideia de mudar a Feira para a Praça das Feiras, você foi uma das que defendeu a permanência na Praça Dante...
Ainda bem, graças a Deus que a minha homenagem vai acontecer na Praça (risos). Nada contra o espaço lá na Praça das Feiras, entende, eu vou lá todo sábado para a feira (do produtor), mas a questão é que a gente que já conviveu anos com a Feira na praça, diariamente indo lá, a gente vê as pessoas que circulam ali, a gente ouve elas dizerem que estão passando ali porque iam pegar o ônibus. Eu ouvi muitas vezes, parada aqui para atravessar a rua, alguém dizer assim, "o que é que está acontecendo ali na praça?", e outro respondia, "é a Feira do Livro"; "Ah, então eu vou lá". Por isso a minha defesa. Eu acho que a Feira do Livro é para essas pessoas, não para quem está acostumado a ir na livraria, uma vez por semana ou a cada quinze dias, ou que telefona e pede para o livreiro reservar um livro assim e assim. Esses vão comprar o livro de qualquer maneira, não precisam que seja colocado na frente deles. É quem não tem esse hábito que temos de conquistar, é para essas pessoas que a Feira tem de ser feita.
Qual foi sua reação, quando soube que seria homenageada?
Eu pensei, "estão loucos, eu não faço nada, só o meu trabalho". Na hora em que eu resolvi trabalhar com livro, foi porque eu gosto, porque quero fazer o melhor, porque é isso que a gente aprendeu, que não tem de enclausurar o livro, trancar como aqueles do meu colégio. E aí parece que a Maria Nair está fazendo algo mais, é amiga do livro. Até então eu achava que o livro é que era meu amigo, e se sou amiga dele, é porque eu tenho a possibilidade de ter do meu lado pessoas que também gostam do livro e do que fazem. Quando eu e a Flávia organizamos o Proler, a gente não faria isso sozinha, foi muita gente envolvida, como durante a organização da Feira do Livro é muita gente envolvida. Eu só consigo fazer essas coisas todas que eu fiz e de repente desaguaram nessa homenagem porque teve muita gente envolvida. Então essa homenagem é minha, mas também de todo mundo que está do meu lado, porque se eu não tivesse colegas que gostam tanto também do que eles fazem, a gente não conseguia fazer muita coisa, nem manter a Feira do Livro. Mas eu fico feliz, muito feliz mesmo de receber essa homenagem. São 30 anos que eu estou lidando com isso, que só vejo livros na minha frente, é livro despedaçado para consertar, livro cheirando a novo, maravilhoso... É minha vida!
E o que muda na sua participação na Feira com o título de Amiga do Livro?
Me disseram que eu vou ter uma lista de tarefas para cumprir. Não sei ainda quais são, talvez a diferença seja que vou estar ali com um título, mas eu vou estar o tempo inteiro, vou estar mais vezes, porque eu vou poder sair da biblioteca no horário de trabalho para ir à Feira (gargalhadas). Até então, eu ia à Feira no horário de almoço ou quando saía do trabalho, eu não podia estar lá o tempo inteiro. Agora eu vou poder dizer, "eu vou, porque eu sou a Amiga do Livro e tenho de estar lá" (mais gargalhadas). Então, a diferença vai ser essa, eu vou estar mais presente, em todas as atividades, no que tiver, e eu vou de bom grado. Quando abrir eu vou estar lá para dar oi para todo mundo, quando fechar eu passo lá para dar tchau, e no meio eu vou estar lá todo o tempo que eu puder. Também já me disseram que eu vou ter de ir nas atividades pré-feira, estou ansiosa esperando por isso. Vai ser muito bom, com certeza.
Entrevista
"Eu sou amiga do livro, sim", diz homenageada da Feira do Livro
Natural de Recife, Maria Nair da Cruz radicou-se em Caxias há 30 anos
Maristela Scheuer Deves
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