Luiza Moreira nasceu em uma Sexta-Feira Santa, há 100 anos – quase 101, idade que completa em abril. Neta de um escravo liberto quando da Lei Áurea, foi criada pelos avós em uma antiga senzala e, ainda pequena, ouviu do avô que o fato de ter nascido num dia santo era um dom e por isso tinha obrigação de fazer caridade. Assim, já nos seus primeiros anos era chamada para colocar a mão em feridas, para curá-las. Não gostava muito, mas fazia.
– Por muito tempo, não queria comer carne, pois ficava pensando nas feridas – conta a agora mãe de santo centenária, que esteve em Caxias do Sul no dia 18 para participar da 1ª Conferência Livre de Promoção da Igualdade Racial, em que foi homenageada.
Leia também:
"O maior desafio do ser humano é a sua baixa autoestima", afirma Eduardo Shinyashiki
Marcos Kirst: zumbis ali, zumbis aqui...
Tríssia Ordovás Sartori: para onde vamos
Como rótulos de cerveja estimulam os consumidores a comprar determinada marca
Quando cresceu, Luiza tomou para si a ideia do avô, ele próprio um curandeiro ("ele benzia muito, e fazia garrafadas"), e fez as pazes com a tarefa de ajudar quem a procurava em busca de cura. Na época, conta, não se usava a palavra mãe de santo, ela era uma "sinhá" ou simplesmente benzedeira.
– Todo mundo vinha lá em casa para eu colocar a mão na ferida, na dor. Ainda vêm.
Apesar de atender a todos os públicos ("ricos e políticos também me procuram, esses vêm às duas da madrugada, para ninguém ver"), Mãe Luiza de Yemanjá, como é conhecida, garante que a discriminação persiste, tanto com a umbanda, religião que professa, quanto com as pessoas negras em geral.
– O que me chama a atenção é que a libertação dos escravos pela princesa Isabel deveria ter trazido a união, mas a discriminação continuou. Ainda hoje muitos dizem "Deus o livre, um negro casar com uma branca" – avalia.
Das histórias contadas pelo avô, lembra que ele relatava ter sido trazido de Moçambique no porão de um navio, com um irmão, e ter sido "vendido por um pano vermelho". Foi parar numa senzala em Itajaí, onde "viveu um inferno, passou muita fome e apanhou muito". Foi ali também que casou-se com uma índia e teve oito filhos, entre eles o pai de Luiza. Quando liberto, comprou um pedacinho de terra do antigo "sinhô" e ficou por ali com a família. Acabou criando a neta, que tem também recordações engraçadas:
– Ele não queria que a gente aprendesse a ler, porque daí iríamos mandar carta para o namorado. Mas eu mandava coraçõezinhos – lembra, com um sorriso.
Mãe Luiza foi aprender a ler depois de grande, e trabalhou mais de 30 anos no grupo escolar onde estudou. Por uns 10 anos, parou com seu trabalho de mãe de santo, mas acabou reconsiderando:
– Os orixás me fizeram voltar.
Continua até hoje, e pensa em passar os segredos para um dos 22 filhos adotivos. Enquanto viver, segue com suas rezas, que dão uma mostra do sincretismo religioso, mesclando orixás e Nossa Senhora. O importante é como ela resume seu trabalho:
– Fazer o bem, a caridade, sem ganhar nada de ninguém.
A conferência da qual Mãe Luiza de Yemanjá participou teve como tema O Brasil na Década dos Afrodescendentes: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento, e reuniu participantes de diversas partes do Brasil, da Argentina e do Uruguai na Câmara de Vereadores de Caxias do Sul.
Gente
Mãe Luiza, um século de rezas
Neta de escravo, mãe de santo de 100 anos foi homenageada em programação realizada dia 18 em Caxias do Sul
Maristela Scheuer Deves
Enviar emailGZH faz parte do The Trust Project