O cineasta Eduardo Coutinho tinha uma teoria de que, desafiadas a contar sua vida diante de uma câmera, as pessoas ficcionavam. Inventavam histórias e personagens para tecer uma trama com ares de fábula, aventura ou epopeia. Não foi assim no sábado passado, no quadro do programa Criança Esperança, da Rede Globo, que reuniu crianças orientadas a ler frases racistas para uma uma mulher negra. Mesmo cientes da condição de dramatização, os pequenos refutaram a ficção. Falou-lhes mais alto o real: elas discordavam daquilo e não se dispuseram à representação. Afirmaram um mundo mais carinhoso e menos intolerante. Na entrevista que segue, o diretor do programa, Rafael Dragaud, descreve o desafio e os riscos da ideia e afirma que, sim, o mundo contemporâneo precisa ser menos adulto e mais infantil.
Pioneiro: Qual o intuito, a a proposta básica do quadro que foi apresentado no programa?
Rafael Dragaud: A ideia era colaborar com uma agenda social propositiva, ajudar a pautar questões urgentes da sociedade. Queríamos discutir a naturalização do racismo no Brasil e a forma como ele impacta a vida das crianças e jovens – esse era nosso foco. Mexer com esses temas sempre será delicado, mas entendemos que correr o risco era mais importante do que de abster.
Quais foram foram os critérios de seleção das crianças?
Queríamos uma mistura de idades, gêneros e raça. No vídeo, temos três brancos, três negros e seis pardos.
Havia o risco de algo não dar certo? Das frases escritas serem assumidas pelas crianças?
Claro que havia… Mas nós assumimos esse risco e deixamos as crianças à vontade pra agir espontaneamente. E elas não decepcionaram, no sentido de posicionamento social. Ocorreu exatamente o que torcíamos para ocorrer: elas se negaram a introjetar o gesto racista mesmo dentro de uma situação parcialmente real, já que era uma cena proposta, como um teste de atores. No fim das contas, mostramos que o mundo das crianças, às vezes, tem muito a ensinar ao mundo dos adultos.
Como vocês perceberam a repercussão do quadro? O que foi mais bacana?
Eu acho que ela ainda está acontecendo, já que o vídeo viralizou na internet. Soube que tem sido usado em salas de aula também pra promover discussão sobre bullying e racismo. Eu e minha equipe estamos satisfeitos em poder colaborar com essa discussão nacional. Quanto mais falarmos sobre isso, melhor. O racismo brasileiro não cabe debaixo de nenhum tapete. Também me comove muito saber que o vídeo está tendo um impacto positivo na vida das crianças que participaram. Estamos, logicamente, em contato constante com as crianças e sabemos que elas estão se sentindo empoderadas por terem contato suas histórias. Elas se sentem contribuindo com o tema numa escala nacional.
Como o diretor olhou e olha agora para seus atores e atrizes mirins? Que turminha, hein?!
Antes de serem atores e atrizes, logicamente, eles são seres humanos. Foi nesse sentido que eles contribuíram no vídeo: com suas humanidades. E deram um show!
Você acredita que estamos carentes de um certo olhar infantil para este mundo tão adulto? A esperança para o futuro está mesmo nessas crianças?
Nós somos muito negligentes com a infância no Brasil. Nós subestimamos o olhar infantil do mundo. Nós adiamos a autonomia dos jovens. Eu acho que hoje não faz o menor sentido perguntar pra uma criança: o que você quer ser quando crescer? Tem um “adulto-centrismo” pesado nisso aí. Na verdade, as crianças já são. Elas não são o futuro, elas são o presente. Você tem um Prêmio Nobel da Paz de 16 anos! Você tem crianças fazendo aplicativos e pensando o sistema de educação de sua própria cidade. Ser infantil, pra mim, é um elogio!
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Carlinhos Santos
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