O cearense Gero Camilo é baixinho, mas essa perspectiva muda assim que ele sobe num palco, ou dá uma opinião, ou escreve um livro, ou canta uma música, ou atua num filme. Sua presença se agiganta no contato com as artes e delas ele também é crítico.
Nessa entrevista, que o ator concedeu ao Pioneiro por conta de sua vinda a Caxias do Sul com o espetáculo Aldeotas, Gero Camilo fala sobre a carreira, acusa a televisão de ser atrasada e diz que participa de um boicote à novela Velho Chico. Confira:
Pioneiro: Que tipo de personagem te interessa mais?
Gero Camilo: Acima de tudo, que ele tenha cara de povo, que seja uma expressão de uma mistura miscigenada e diversificada como é a cultura brasileira. Quando as histórias dramatúrgicas são muito restritas à exposição de uma elite cultural, eu tenho mais dificuldade de encarar essas histórias, acho elas muito limitadoras. E focam para determinadas elites, que apenas consomem essa arte, mas essa arte tem a necessidade de ser maior. Os clássicos são muito legais, mas muitas vezes trazem a história do rei, do capitão, e a história do povo é sempre esquecida. Quando digo esse povo, é o indivíduo mesmo, não é o povo coletivo. É dizer que o protagonista, o herói, ele não é a representação de uma casta social, o herói é a representação de um ser humano, então esse herói ele é tanto o rei quanto o vigia do castelo. O olhar do protagonista não tem que estar necessariamente do lado do rei, pode estar do lado do sentinela do castelo. E a gente nunca vê a história a partir desse ponto de vista do sentinela... e o rei passa como um figurante. Isso é o que mais me atrai, a possibilidade de criar uma dramaturgia mais democrática, diversificada e miscigenada, como é o nosso país.
Além do teatro, você trabalha com música, cinema, tevê. Alguma dessas linguagens é mais plena ou cada uma responde a um tipo de inquietação tua?
O teatro é a coisa mais importante de todas essas linguagens, porque é ele que alimenta, em termos de qualidade, inclusive, essas linguagens. Um bom cinema precisa de bons atores, e esses atores, na grande maioria das vezes, saem do teatro. A televisão nem se fala, é a mais carente nesse sentido. É a que mais necessita de bons atores, e não tem. Não que não tenha, mas muitas vezes as escolhas na televisão se dão a partir da beleza, do estereótipo e não do talento. Por isso que acho que ela é a mais carente do teatro. O teatro é pleno, porque é uma expressão, é a origem, para o teatro acontecer não precisa dessa aparelhagem toda, a gente só precisa de um corpo cênico, e esse corpo é humano. O que não quer dizer que é mais fácil, é mais direto. No fundo, eu acho mais ousado. Isso me fez lembrar que, recentemente, a classe teatral promoveu um ato político a favor da democracia.
Você acredita que o teatro ainda é esse local da força, de se posicionar, a denúncia está mais presente ali?
É, claro. Aliás, eu estava neste ato, eu até gravei um vídeo, mas eles não conseguiram utilizar. O teatro é uma força política, ele não nega essa força política nunca. Porque essa força está na origem, tá lá na Grécia, tá no cidadão se formando a partir dessa relação com o espaço, com Ágora, com o que acontecia na Grécia naquele período. De lá para cá, ele segue sendo essa força política, que não tem nada a ver com partido, tem a ver com o mundo, com a relação social que ele exige para que ele aconteça. Se ele exige essa presença social para que ele exista, é estranho que ele não dê para essa sociedade experiência a partir da arte, como uma resposta a esse encontro entre o público e o artista.
A gente está falando em expressões artísticas e sua força. Como tu avalias o acesso à cultura no Brasil hoje?
Não tem uma resposta só, às vezes é mais fácil, às vezes mais difícil. Quando se torna mais fácil, é certeza de que o público vai. Muitas vezes, quando se oferece teatro a preços populares, é impressionante como o público vai. Às vezes, se torna muito caro, sobreviver de arte não é fácil, é uma arte coletiva. Então quando você vê, você está responsável pelo pagamento de umas dez pessoas. Parcerias como esta que está acontecendo com o Sesc (que trouxe o espetáculo Aldeotas até Caxias e Farroupilha), possibilita que a gente viaje, aproxime a obra das pessoas de forma mais democrática.
Sei que você já interpretou Van Gogh, queria saber dos artistas que mais te inspiram.Vivos ou mortos? A teu critério...
Pois é, tem o Van Gogh, mas tem Cartola, Mário de Andrade, eu amo muito Mário de Andrade, ele é uma das minhas referências para a escrita. Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, toda essa galera me inspirou muito a me tornar poeta, me assumir como escritor. Dos vivos, tem tanta gente legal para encontrar, essa relação minha com o Victor (Mendes, parceiro na peça Aldeotas) é um encontro de gerações e isso me deixa muito contente. Olha, tem a Karina Buhr, os pernambucanos do cinema, Lírio Ferreira, esse povo. Tem a cineasta, Anna Muylaert, tem Laís Bodanzky, tem José Celso Martinez Corrêa. Aí tem meus parceiros, Marat Descartes, é muita gente e muita gente de várias artes, como faço música, teatro, cinema, e literatura... Tem Marcelino Freire, que vai ser meu editor agora, que vou lançar um livro de poesias.
Como vai chamar o livro?
Cajita de Monerias, é do espanhol, como se fosse uma caixinha de surpresas ou caixinha de moedas. São poemas que escrevi quando fui para o México, entre o México e o Brasil quando fui para filmar um filme. Esse material eu escrevi nesse período e agora vou lançar esse livro em maio.
Que outros projetos você tem?
Tem um filme sobre a história do Adoniran Barbosa. Eu faço o Mato Grosso, daquela música Saudosa Maloca.
É impressão minha ou tu tens feito menos filmes agora?O cinema é ainda uma linguagem que tu procuras fazer sempre?
Eu adoro cinema, procuro fazer pelo menos um filme por ano. Acho que não se faz tanto cinema no Brasil como necessita ser feito. Então, me faltam personagens no cinema, geralmente sou chamado para fazer pequenos personagens, acredito que a produção é pequena para a demanda de artistas que tem nesse país. E teatro realmente é a minha opção, minha prioridade, teatro, música e literatura são os meus caminhos prioritários.
Você tem assistido à novela Velho Chico, o que tem achado dessa busca por uma identidade estética nordestina?
Não, eu boicoto essa novela. Existe um boicote por causa da declaração homofóbica do autor dessa novela. Eu defendo esse boicote e me recuso a ver Velho Chico. O escritor fez declarações homofóbicas, sendo contra representação gay em novelas, ou o prazer dele em ter vários filhos e nenhum deles ser gay, ou seja, foi uma coisa muito feia da parte dele. Independente de ter bons atores ou não, o que precisa ter é caráter dentro de uma emissora ao se colocar determinadas situações públicas. Por mais que seja uma novela muito bem feita e que tenha bons atores lá, para mim é uma novela que já nasce comprometida com um discurso careta e homofóbico do seu autor.
Esse ainda é um problema geral da tevê?
A tevê é muito atrasada com relação aos avanços culturais, por isso raramente eu a vejo. Enquanto ela tá na briga para que seja gravado um beijo gay numa novela.. isso é culpa da própria televisão muitas vezes, que cria esse distanciamento. E quando coloca isso, coloca como se fosse uma tribuna. E não é. Nós não estamos interessados em saber se o Ibope aceita ou não a livre expressão de um desejo. Então a televisão é muito atrasada nesse sentido, e esse é um dos motivos que faz com que raramente eu faça alguma coisa dentro dela.
Vou aproveitar a deixa para te perguntar o que a arte tem que causar em quem a encontra? Qual seu papel?
Tem que balançar as estruturas, tem que fazer com que o outro saia de lá pensativo e questionando tudo, porque é disso que a gente precisa, de transformações sociais positivas. E a arte é uma das que mais contribui nesse sentido, tanto quanto a filosofia, as ciências que nos ajudam a pensar a partir da nossa sensibilidade humana.