Em 1943, o então presidente Getúlio Vargas assinou o Decreto-lei 5540, instituindo o 19 de abril como Dia do Índio. A ideia era seguir a recomendação do 1º Congresso Indigenista Interamericano, realizado três anos antes no México e que propunha a criação da data pelos governos do continente como uma forma de levar o estudo desses povos e de seus problemas atuais às instituições de ensino. O tema passou, realmente, a ser estudado nas escolas, porém geralmente restrito ao passado e a alguns estereótipos, como o do índio seminu enfeitado com penas - reproduzido em desenhos pintados por milhões de crianças ano após ano.
E hoje, passadas mais de sete décadas, será que o 19 de abril ainda tem razão se ser?
- É um dia que perdeu o sentido, serve para comemorar uma imagem que não é real. Não existe o índio comemorado nesse dia - avalia o escritor Daniel Munduruku, ele próprio um indígena.
Leia as últimas notícias de Cultura e Tendências
Para o escritor, graduado em Filosofia, História e Psicologia, doutor em Educação e pós-doutor em Literatura, o equívoco começa pelo uso da palavra "índio", um reducionismo que faz parecer com que todos os povos indígenas, com várias diferenças entre si, são uma coisa só.
- "Índio" é um apelido que nos colocaram. Ao longo da história, ela foi ganhando novos significados, até chegar aos nossos dias com uma carga ideológica muito forte.
Essa carga incluiria desde o estereótipo do selvagem dos faroestes americanos até a imagem ideologizada de preguiçosos, atrasados, atrapalham o progresso ou vivem às custas de programas sociais. Para Munduruku, isso equivale a uma espécie de bullying, iniciado ainda em 1500 e que perpetua o colonialismo do pensamento.
Grasiela Tebaldi Toledo, coordenadora do Laboratório de Arqueologia do Instituto Memória Histórica e Cultural (IMHC ) da UCS e professora do curso de História da instituição, ressalta a existência ainda de outra percepção equivocada: a de que aqueles que veem televisão, vestem calça jeans ou moram como os "brancos" não são mais indígenas.
- A palavra "índio" ficou marcada muito fortemente na nossa sociedade, e, além de fazer parecer que são todos uma coisa só, cristalizou a imagem da pessoa nua, com pinturas corporais. Mas a cultura indígena é uma dinâmica, foi se atualizando, como as outras - ressalta.
Embora esse imaginário caricato persista, aos poucos ele começa a mudar. E como a construção da nossa percepção social tem muito a ver com o ensinado em sala de aula, a mudança se aprofundou a partir de 2008, após a Lei nº 11.645 alterar o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e determinar a obrigatoriedade do estudo da história e da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Na nova redação da LDB, a determinação é que se resgate as "contribuições nas áreas social, econômica e política" desses povos, abordando os temas em todo o currículo escolar dos ensinos fundamental e médio (especialmente nas áreas de educação artística, literatura e história).
Mudanças - Uma das consequências da nova legislação é que a temática indígena deixou de ser tratada apenas nas proximidades do Dia do Índio. Além de se diluir ao longo do ano, o conteúdo expandiu-se, abordando melhor a cultura desses povos e a sua contribuição para a formação do país.
- Antigamente, numa semana as crianças saíam pintadas de coelhinho, porque era Páscoa, e na seguinte, pintados de índio. E para eles era quase a mesma coisa - avalia a coordenadora pedagógica Denise Frizzo, do Colégio La Salle, em Caxias do Sul.
Agora, o colégio procura lançar um novo olhar sobre a cultura indígena. As três turmas do 3º ano do ensino fundamental, por exemplo, farão em maio uma saída de campo à Quinta da Estância, em Viamão, onde terão contato com integrantes das etnias Kaingang e Mbyá-Guarani. Para preparar-se, estão estudando lendas indígenas, além de palavras e costumes herdados desses povos.
Na última quarta feira, parte dos pequenos estudantes teve uma aula diferente: aprenderam a fazer tapioca, alimento de origem indígena. Primeiro ouviram a lenda de mani oca, depois como se faz a fécula dessa planta e, por fim, acompanharam o preparo da guloseima, já conhecida da maioria. Quando a professora perguntou se sabiam outro costume herdado dos indígenas, logo responderam: chimarrão.
Enquanto isso, outro grupo da mesma série participava de uma gincana cultural temática. Com tablets nas mãos, acessavam sites educativos e competiam para responder questões sobre o tema. Também ouvem explicações sobre instrumentos indígenas e, mais uma vez, dão mostras de já saber ao menos um pouco sobre o assunto:
- Eles não caçavam pelos motivos do homem branco, mas para sobreviver - explica Marcos Dalcin Pereira, do alto dos seus oito anos.
Na Escola Estadual Santa Catarina, os professores Thiago Bach (geografia e sociologia), Camila Pacheco (história e sociologia) e Marinice Monteiro (história e geografia) procuram levar aos alunos uma abordagem mais crítica sobre o assunto.
- No livro didático, temos a história de quem venceu. O indígena aparece como personagem secundário, e os portugueses como quem trouxe a civilização - diz Camila.
Para Marilice, embora ainda seja difícil fazer a gurizada pensar diferente, os alunos mais maduros, lá pelo 3º ano do ensino médio, já questionam eles mesmos se a história realmente aconteceu tal qual ouviram falar.
- Ainda há bastante espaço para explorar, afinal, somos um país indígena. Quando trabalho a nova onda de imigração, por exemplo, lembro aos alunos que os indígenas é são eram os verdadeiros brasileiros. Mas o indígena em geral ainda não aparece como fato gerador (principal) - complementa Bach.
Apesar do esforço dos professores, o caminho ainda é longo. Muitos estudantes reagem a novos conceitos (como uma tentativa de fazê-los refletir sobre a parcela de culpa da sociedade branca na marginalização dos indígenas) reclamando que isso não está nos livros, conta Camila. Além disso, uma rápida enquete realizada pelo Pioneiro com 15 estudantes de ensino médio da escola mostrou que a maioria diz saber apenas que os índios já estavam aqui quando os portugueses chegaram e foram explorados por eles. Duas alunas lembraram ter lido que escritores românticos os usavam como inspiração e outra ainda que "viviam bem, caçavam e tinham a cultura deles". Sobre o indígena atual, pouco se sabe. Como bem definiu Bach, ainda há muito a ser explorado.
Capacitação - A Secretaria Municipal de Educação (Smed) e a 4ª Coordenadoria Regional de Educação (4ª CRE) têm procurado realizar capacitação dos professores das duas redes para trabalhar tanto a cultura indígena quanto a afro-brasileira.
Flávia Meneghini, assessora do Ensino Fundamental e Educação para a Diversidade da 4ª CRE, lembra que essas temáticas devem ser tratadas como conteúdo didático normal, ao longo do ano, e não só nas datas comemorativas. Já a Smed promoveu, em março, dois encontros de formação na área, para um grupo de 31 professores.
Reafirmação de identidade
Nesta semana que antecede o Dia do Índio, a Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Nivo, no interior de Farroupilha, realizou diversos trabalhos para relembrar a cultura do povo kaingang. Entre eles, o estudo de plantas que serviam de alimento a seus antepassados, como fuá, samambaia, caraguatá e radiche. Danças e brincadeiras tradicionais, como cinco marias, também foram recordadas, e os 12 alunos puderam conferir ainda uma pequena mostra de instrumentos como arco, flecha, lança e artesanato, produzidos ali mesmo na comunidade Panóha Mág.
O que mais chama a atenção, entretanto, é que enquanto em outras escolas atualmente se evita trabalhar a representação costumeira do índio, o mural da Nivo estampa orgulhosamente diversos indiozinhos coloridos pelos alunos. Na terça-feira à tarde, alguns dos alunos menores (a instituição atende do ensino infantil ao 4º ano do ensino fundamental) divertiam-se pintando as gravuras saídas da impressora recém-recebida pela escola.
Para Grasiela Toledo, do Laboratório de Arqueologia do Instituto Memória Histórica e Cultural (IMHC) da UCS, essa reprodução de uma visão estereotipada pelos próprios índios pode ser vista como uma tentativa de reafirmação da sua identidade.
- Eles estão inseridos num local que tradicionalmente não tinha contato com eles, e precisam se reafirmar como índios, mesmo tendo atualmente uma vida muito parecida com a nossa. É como os gaúchos que, mesmo não frequentando CTGs por aqui, fazem isso quando estão morando fora - analisa.