"Com que rosto ela virá?", questionou Raul Seixas na canção Canto para Minha Morte, de 1976. Muitos achavam que "ela" marcaria encontro em local público, que chegaria enquanto o artista estivesse em cima do palco, habitat que tanto forjou sua identidade e sua trajetória. Mas a morte veio "beijar" Raul em encontro íntimo, na cama — talvez vestida de cetim, como ele acreditava. O corpo do músico foi encontrado na manhã do dia 21 de agosto de 1989, no apartamento que o músico mantinha em São Paulo. Na próxima quarta-feira (21), completam-se 30 anos do dia em que o eterno Maluco Beleza provou daquele "gosto estranho" e deixou o cenário musical brasileiro órfão de sua inventividade e irreverência.
38 dias antes do encontro com a morte se tornar real, mais precisamente na noite gelada de 14 de julho de 1989, Raul Seixas esteve em Caxias do Sul como atração no palco do extinto Teatro de Lona. Aquela sexta-feira ficou marcada na memória de muita gente: ao mesmo tempo que representava o sonho de ver um ídolo mítico como Raul Seixas de perto, o encontro também escancarou a fragilidade do herói. O profeta era de carne e osso e, quem o viu naquela noite, compreendeu que o fim estava mesmo próximo.
O arquiteto Erni Sabedot, 53 anos, lembra da expectativa para ver o ídolo e também da sensação que ficou depois que Raul entrou em cena.
— Era inacreditável para minha geração que pudesse vir um show do Raul Seixas, que era o top do top do top, para Caxias do Sul. Quando veio, não se acreditava. Eu fui todo cheio de expectativa de encontrar um Raul Seixas com todo gás. Mas não foi isso que aconteceu. O Raul já estava bem debilitado, ele não agitava o show, estava bem caído. Todo mundo saiu satisfeito, mas com vontade de que ele estivesse melhor. A gente ficou triste pelo estado que ele estava, apesar de contente de conseguir ver ele na terrinha — conta o fã, que tinha 23 anos na época.
A apresentação em Caxias ocorreu no meio da turnê de divulgação do disco A Panela do Diabo, gravado em parceria com Marcelo Nova. Foi ele, também baiano, roqueiro e de uma geração mais jovem, quem resgatou Raul do ostracismo em que se encontrava sua carreira no final dos anos 1980. Caxias foi mais uma das cidades por onde a dupla passou para mostrar que, sim, Raul estava vivo e fazendo música.
— Quando ele pisou no palco, podia estar fraco, mas era o Raul Seixas ainda — diz Erni.
Marcelo foi quem abriu o show por aqui. Cantou algumas músicas do Camisa de Vênus, sua banda, mas o público não parava de chamar pelo astro da noite. O coro ecoava pelo teatro: Raul, Raul, Raul...
— A massa inteira estava gritando por ele. Lembro de ver o Raul entrar no palco, ele entrou meio cambaleando e o Teatro de Lona veio abaixo. A galera cantava mais alto que o próprio som. Era uma coisa mística. Até hoje ficou na memória a emoção de ver ele entrando no palco — recorda o técnico de áudio Marcos Antonio dos Santos, 49.
Segurando o show
Maluco Beleza foi a primeira canção que Raul Seixas cantou, para delírio do público que acompanhava a letra do início ao fim. Outro momento marcante foi a clássica Sociedade Alternativa. No palco do Teatro de Lona, Raul repetiu o ritual que sempre o acompanhava ao entoar a canção: abria um pergaminho para ler a lei do forte, ou a Lei de Thelema (em referência à obra do mago inglês Aleister Crowley)
— Lembro dele lendo o pergaminho enquanto a galera fazia o coro de "viva a sociedade alternativa" — descreve Marcos.
A canção Carpinteiro do Universo, já da parceria com Marcelo Nova, também estava na boca do povo. Foi nessa que Raul fez uma das interpretações mais inspiradas.
— Essa música marcou para mim. Acho que por ser mais recente, ele estava com mais disposição de mostrar — deduz Erni.
Apesar de alguns momentos de maior interação com o público protagonizados por Raul, foi Marcelo Nova quem "segurou" a apresentação nos momentos em que o ídolo tropeçava em alguma letra ou perdia o fôlego.
— Quem dava energia no palco era o Marcelo Nova. Os próprios fãs sentiram isso, que o Raul estava bem fraco. Não foi um caso de decepção, mas foi como uma surpresa, a gente esperava aquele gás — diz Erni.
— Ele (Raul) não conseguia acompanhar, cantava só as introduções das músicas e o Marcelo Nova entrava — completa Marcos.
No palco, Marcelo se igualava aos fãs que habitavam a plateia. Mirava Raul com os olhos da admiração e com a certeza de estar na presença de um artista grandioso.
— Marcelo sofreu acusações, mas acho que ele conseguiu fazer uma turnê que foi uma grande homenagem ao Raul — opina Erni.
Homenagem que, há 30 anos, também teve participação dos fãs caxienses no Teatro de Lona.
O retorno para o hotel
A passagem de Raul Seixas por Caxias, em julho de 1989, deixou algumas "lendas" presentes na memória das pessoas. A proximidade da data da apresentação com a data da morte do artista fez muita gente acreditar que o show na cidade teria sido o último da carreira de Raul, porém, a aparição derradeira nos palcos ocorreu em Brasília, em 11 de agosto daquele ano.
Muito se especulou também sobre o que Raul Seixas teria consumido por aqui. Alguns fãs ficaram com a nítida ideia de que ele estava bêbado, outros entenderam que o ídolo estava mesmo doente — não que uma hipótese anule a outra.
A agente cultural Jaqueline Pivotto, 49 anos, era funcionária do Alfred Hotel na época do show. Ela lembra, aliás, da passagem de muitos artistas por lá entre o fim da década de 1980 e início dos 1990, de Lobão a Belchior. Sobre Raul, ficou uma imagem forte guardada na memória:
— Lembro que estava trabalhando à noite naquela data, especificamente. Não vi ele sair, mas a imagem que tenho nitidamente é de quando ele chegou do show. Deve ter sido ali pelas 2h da manhã. Lembro que chegou carregado, num lado tinha o Marcelo Nova e no outro tinha outra pessoa. Ele não caminhava, ele arrastava os pés e foi levado até o apartamento — relata.
Meu amigo Alessandro
Para o escritor Tiago Sozo Marcon, 44 anos, a lembrança de Raul Seixas está atrelada a um microcosmos particular no qual um adolescente de 13 anos descobria o universo da obra do artista por meio das dicas de um amigo mais velho, em meio a jogos de Atari e discos de vinil rodando na vitrola. O amigo em questão era Alessandro Carvalho, que acabou inspirando o conto que Tiago assina no livro Conte Outra Vez _ 30 Contos Inspirados em Canções de Raul Seixas, com lançamento digital e gratuito previsto para esta quarta, aniversário de morte de Raul.
— Acabei escolhendo Mamãe Eu Não Queria, que me lembrava muito esse amigo meu. Ele (Alessandro) cantava muito essa música quando a gente tinha uns 13 anos, e ele já tinha uns 17, e estava prestes a se alistar — lembra o escritor.
No texto, batizado de Mas Fui Obrigado (como numa continuação ao título da canção), Tiago batizou o personagem principal com o nome de Alessandro. A história fala de um homem que seguiu carreira militar mesmo sem ter afinidade com o universo do quartel e do militarismo. O amigo, no entanto, não chegou a servir.
_ Paradoxalmente, eu via essa ambivalência nele: cantava Mamãe Eu Não Queria muito como um hino de liberdade, de poder dizer não; mas notei que quando não foi escolhido ele não ficou exatamente feliz, acho que enxergava ali uma oportunidade _ revela o escritor.
O conto acabou servindo para Tiago homenagear o amigo, falecido em função de problemas de saúde em agosto de 2017, mas não somente. Debruçado novamente sobre as canções que escutava na adolescência (agora consumidas de forma digital e não mais rodando na vitrola), ele acabou naturalmente refletindo também sobre a profundidade de poesia de Raul Seixas.
_ Agora revisito a obra dele e traço paralelos com as coisas que li e venho lendo. Cada vez vejo mais a insubmissão, a irreverência, o humor, o lirismo_ elogia.
A própria canção Mamãe Eu Não Queria, que foi objeto de seu conto, ganhou significados bem atuais nas reflexões de Tiago:
_ Às vezes, a grandiosidade está em recuar, em abdicar da coisa. Esse flerte com o totalitarismo que estamos vivenciando hoje me faz pensar em como é humano poder dizer não.
Legado que não morre
Organizador da antologia Conte Outra Vez — 30 Contos Inspirados em Canções de Raul Seixas, o baiano Tiago Pereira cresceu com a figura do artista muito próxima de si. Ele passou a infância na cidade de Dias D'Ávila, reduto da família de Raul e onde a praça central foi batizada com o nome do roqueiro. O livro foi a maneira encontrada pelo baiano para celebrar autores de quem é fã e manter viva a memória do artista que ajudou a compor sua própria história.
— Os anos criaram muito misticismo e lendas ao redor de sua figura, mas o que ficou para mim foi um artista que nunca deixou de acreditar em si mesmo, em sua obra e no que tinha a dizer, por mais obstáculos que surgissem em seu caminho — elogia.
Para o escritor caxiense Tiago Sozo Marcon, que assina conto na antologia, uma das características que mais chamou atenção na obra de Raul Seixas foi a pluralidade de suas linguagens artísticas. E ser multicultural talvez seja o principal caminho do futuro.
— O Raul destoava um pouco das coisas que talvez a gente estivesse acostumado a ouvir, pela irreverência, pela mistura de ritmos, pelo próprio flerte com coisas tão antagônicas como ocultismo e baião. A gente era meio bairrista, amava rock gaúcho, e o Raul vinha como uma abertura bem multicultural — avalia.
Já Erni Sabedot aponta para outro ponto crucial no legado artístico de Raul Seixas, o conteúdo político de suas composições. Ele cita a clássica Metrô Linha 743 como exemplo:
— O Raul nos alertava sobre os intelectuais, as pessoas que pensam sendo perseguidas, e isso mais do que nunca está na ordem do dia.
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A antologia Conte Outra Vez, com lançamento digital no dia 21, estará disponível gratuitamente na Amazon, Apple Books, Kobo, Barnes & Noble e no site www.tkpereira.com.br.