Perto de completar 100 anos, o primeiro centro espírita de Caxias do Sul começa a resgatar a história de sua fundadora e tenta esclarecer um mistério: onde estão os restos mortais da poetisa, professora, jornalista, escritora e roteirista Anna Figueiredo Saldanha (1892-1931), precursora da doutrina na cidade?
É normal que sepulturas antigas desapareçam em reformas e ampliações ou fiquem sem referência quando não há mais integrantes vivos da família. No caso de Anna, morta há 88 anos, a incógnita chama a atenção porque abrange a memória da responsável pelo surgimento da entidade Fora da Caridade Não Há Salvação, o primeiro endereço público do espiritismo na região e possivelmente o segundo a abrir as portas no Rio Grande do Sul. Além dessa credencial, Anna era integrante de uma família de prestígio, no caso, os donos da lendária Livraria Saldanha, cujo prédio ainda existe na esquina da Avenida Júlio de Castilhos com a Rua Visconde de Pelotas.
A história de Anna está sendo resgatada pela jornalista Kamila Zatti, 32, com apoio da diretoria do centro espírita. A caxiense se deparou com o intrigante sumiço do túmulo e a dificuldade para encontrar informações sobre uma personagem introspectiva e notável pelas ideias avançadas para os padrões dos anos 1920. As sepulturas dos familiares dela estão intactas, mas não há vestígios da poetisa.
Anna ou Nininha, apelido de família, é desconhecida da grande maioria hoje em dia, mas exerceu um papel marcante no meio intelectual de Caxias, terreno dominado por homens. Descendente de imigrantes portugueses, era uma das filhas do comerciante Henrique Saldanha de Figueiredo e Palmyra do Amaral Lisboa. Nasceu em Rio Pardo, no Pampa gaúcho, e mudou-se com o pai e os irmãos para a Serra após a morte da mãe em 1915.
Apesar de integrar a alta sociedade em Caxias, ela viveu uma rotina recatada, longe dos bailes e eventos sociais a quais estavam acostumados os jovens de sua idade e integrantes da própria família. Essa discrição provavelmente era influenciada pela condição física de Anna, que sofria de paralisia de membros, deficiência que remeteria à infância. Tratava a dor do corpo com remédios e encontrava na literatura e nas reflexões um alívio para a alma. Documentos do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami confirmam que a poetisa tinha saúde frágil e sofria com enfermidades, mas não há um diagnóstico claro sobre o tipo de doença nos diversos escritos deixados pela família.
Como mulher, solteira, intelectual e espírita, Anna enfrentou o preconceito na sociedade tradicional do período. A cidade estava formando a sua identidade cultural e recém havia sido elevada a categoria de cidade em 1910 e a religião católica tinha papel dominante na vida da população urbana e rural.
— Anna tinha fascínio pelas ideias francesas trazidas por Allan Kardec, por outro lado o Brasil vivia as premissas do positivismo do filósofo francês Augusto Comte — diz Kamila.
A família seguiu no catolicismo, mas a poetisa voltou-se para a doutrina espírita, o que, por si só, já era um desafio aos pensamentos em vigor. Basta recordar que no século 19 o espiritismo era considerado crime no Brasil e nos anos 1920 havia um embate entre a doutrina e a psiquiatria.
Mesmo com o cenário desfavorável, Anna, acompanhada de Irma Valiera e Zelinda Brigidi, fundou o Fora da Caridade Não Há Salvação no dia 10 de outubro de 1924.
Ouça um bate-papo sobre a memória de Anna Saldanha:
Choque de crenças
Nos relatos orais registrados pelo Arquivo Histórico, antigos moradores chegaram a comparar a imagem de Anna ao diabo, muito em razão do andar claudicante forçado pela paralisia, mas também pela aura que envolvia o espiritismo na cidade. Liciane Festugato, 38 anos, integrante da diretoria do Fora de Caridade Não Há Salvação, lembra das histórias contadas pela avó Elídia (já falecida).
— Minha avó dizia que as pessoas não passavam na frente do centro espírita (que funciona até hoje Rua Pinheiro Machado, entre a Garibaldi e Visconde), preferiam atravessar a rua. Isso lá nas décadas de 1940/1950. Imagine no tempo da Anna —diz Liciane.
O choque de crenças não impediu que o local ganhasse adeptos e atraísse personalidades como o do comerciante e espírita Jardelino Ramos.
Já muito doente no final dos anos 1920, Anna teve o cuidado de destinar cada um de seus pertences para a caridade. Doou escrivaninha, roupas, estátuas, pratas, malas, livros e dinheiro. Morreu no dia 22 de abril de 1931, aos 38 anos, após presidir o centro espírita por sete anos.
Na passagem para outro plano, como definem os espíritas, Anna pediu um sepultamento simples e sem relação com ritos católicos, indicativo da delicada relação estabelecida. No testamento, ela se apresenta como espírita, em oposição à religião tradicional, conforme transcrição abaixo:
"Nada de padres, nem de igreja. Quero ser enterrada como espírita. A máxima simplicidade em tudo. Ele me acompanhará no novo plano da existência em que a minha consciência irá despertar, as preces e os pensamentos carinhosos dos que sinceramente me querem. Aqueles que forem dignos da Verdade e desejarem conhecê-la esforcear-me-ei por dar-lhes as provas da sobrevivência do Ser...".
O enterro ocorreu no Cemitério Público Municipal. A cova número 21, porém, perdeu-se com o tempo assim como registros do destino posterior que poderia ter sido dado ao corpo.
"Se quiserem ser gentis comigo, não ponham luto", descreveu Anna numa das frases do testamento.
SEDE
O centro espírita fundado pela poetisa originalmente chamava-se Fora da Caridade Não Há Salvação. Em 1932, o nome foi alterado para Anna Saldanha, como uma homenagem.
Em 1939, mesma época em que ocorre mudança definitiva do centro para a sede própria, na Rua Pinheiro Machado, entre as ruas Garibaldi e Visconde de Pelotas, o espírito de Anna Saldanha teria se comunicado com um médium e pediu a volta do nome original, solicitação atendida pelos membros da diretoria.
O centro completará 95 anos em outubro e o centenário será comemorado em 2024.