A história industrial de Caxias do Sul orgulha-se do espírito laborioso do libanês Kalil Sehbe. Imigrante que desafiou limitações e guiou-se por um determinismo implacável, fundou há 90 anos uma promissora fábrica de confecções que resultaria na poderosa Organizações Alfred.
A dimensão biográfica de Kalil Sehbe (10/6/1887-04/12/1973) está registrada parcialmente nos jornais de época. A riqueza deste homem ficou centrada na dimensão empresarial. Mas ao se aprofundar de uma revisão com seus descendentes, surgem relatos emocionantes. Kalil simboliza os valores do autêntico humanismo, de pai de família, de cidadão comunitário, de personalidade pacífica, uma referência que ajudou construir um mundo com trabalho persistente e respeitoso, agregando colaboradores de mesma índole.
O neto Alfredo Sehbe, 68 anos, identificado com a biografia, relata importantes fatos que marcaram a longa peregrinação de Kalil pelo mundo. O empresário recorda que seu avô, na juventude de seus 18 anos, veio para o Brasil em 1904, mas não permaneceu no Rio de Janeiro. Alterou sua rota para os Estados Unidos. Trabalhou numa fábrica de artefatos de borracha em Boston. Conheceu Badia Hage Bizaid, em 1907, que tinha a penas 14 anos, casando-se em 1908. Em Boston nasceram Olga, Alfred e Miguel. No Líbano, Odete e José. E, no Brasil, nasceu Jorge Sehbe.
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Com a eclosão da 1º Guerra Mundial, em 1914, Kalil retornou ao Líbano para amparar os pais, justamente num momento de conflitos que envolvia a Turquia, sob o domínio otomano. Residindo em Kfour, norte do país, Kalil exerceu a função de prefeito e sentiu na responsabilidade de resolver as dificuldade de um povo oprimido pela convulsão social, onde o desafio diário era garantir alimentos e vestimentas.
Dentro deste contexto dramático, despertou uma nova intenção de emigrar. Alfredo Sehbe recorda que os primos Belchior, Gabriel e Salim David, que estavam domiciliados em Caxias do Sul, comentaram a Kalil da agradável hospitalidade brasileira. Em 1922, saiu de lá deixando a mulher e os filhos, de forma prudente, pois não sabia de fato a realidade que iria encontrar. O amparo dos primos demonstrou-se fraterno e sinalizou a oportunidade na venda de tecidos. Kalil então começou a comercializar os produtos para enxoval diretamente nas casas de sua clientela. Com os bons resultados do trabalho, obteve recursos suficientes para trazer a mulher e os filhos a Caxias do Sul, em dezembro de 1923, relembra o neto Alfredo.
Atento com as necessidades deste ramo, Kalil Sehbe investiu em 1927 numa promissora confecção. A estrutura contava com 12 colaboradores e oito máquinas de costura, sendo uma delas da mulher Badia, companheira que sempre acreditou nas incursões de Kalil, suportando com paciência e esperança as mudanças bruscas e as grandes distâncias geográficas.
A partir daí, o Brasil seria a pátria definitiva de Kalil Sehbe. Mas as turbulências estariam sempre presentes na vida familiar e empresarial. O espírito de superação não abalou o libanês. A Revolução de 30, o conflito da 2º Guerra Mundial e as sucessivas instabilidades econômicas não impediram da fábrica se consolidar no mercado nacional. No âmbito familiar, veio o infortúnio com a morte de Alfred e José, em 1946. Desta vez, foi Badia que deixou o lar caxiense e buscou consolo e forças com familiares nos Estados Unidos, relata Alfredo. No entanto, a memória de Alfred acabou transformando-se no símbolo de uma marca conceitual que elevou a fama da indústria caxiense. As Organizações Alfred, reconhecida pelos produtos de qualidade, marcou época num Brasil inclinado pelo desenvolvimento exportador.
Expansão do Grupo Alfred no Brasil
O parque fabril da Organização Alfred tinha como ferramenta principal a máquina de costura. A expansão dos negócios se deve ao zelo com seus colaboradores. Trabalhar na Kalil era como viver num segundo lar. Na evolução do tempo, as unidades fabris aumentavam. Na imagem, percebe-se a seção de costura, onde centenas de mulheres produziam os mais variados tipos de roupas masculinas e femininas. Na década de 1970, uma filial produtiva foi inaugurada na Bahia, demonstrando a competência da indústria caxiense.
A presença na Fenit, acima de tudo, era a contribuição libanesa orgulhando o produto gaúcho e caxiense em São Paulo. O médico Jorge Sehbe, que foi presidente da CIC, tinha um sangue errante igual ao pai. Viajava ao exterior para estudar e trazer novidades tecnológicas. Um estágio de seis meses nos Estados Unidos, em 1960, expressou a consciência e responsabilidade com a modernidade no ramo do vestuário. Na administração, Miguel Sehbe compartilhava propósitos comuns e articulava projetos inovadores.
O ingresso no ramo hoteleiro está associado a Festa da Uva e o carinho em receber bem os turistas e homens de negócios. A empresa recepcionava artistas, políticos, empresários, religiosos, e, para a boa acolhida, uma hotelaria conceitual era indispensável.
Humanidade da Fundação Badia Sehbe
O casal Kalil e Badia Sehbe viveu experiências dolorosas pela mudança de residência, bem como de conviver com culturas, regimes de governo e idiomas diferentes. Por todas estas vicissitudes, a casa e um bom trabalho eram valores prezados com extremo respeito.
A capacidade de poder constituir uma empresa e empregar pessoas foi algo que Kalil Sehbe deixou como grande contribuição a Caxias do Sul. Na década de 1960, a Fundação Badia auxiliava os funcionários na satisfação de inúmeras necessidades. Na imagem, percebe-se a ocasião em que foi lançado um plano habitacional para os colaboradores. Naquela ocasião, percebe-se Dom Benedito Zorzi, Kalil, prefeito Hermes Webber, Jorge e Miguel Sehbe. A fundação também oferecia auxílio jurídico, hospitalar, farmacêutico e odontológico. Posteriormente, dentrodestes princípios, em 1980, no bairro Galópolis, Miguel Sehbe promoveu a venda do acervo mobiliário do Lanifício Sehbe para seus funcionários. Até então, os trabalhadores moravam em casa alugadas da própria empresa.
Mentalidade fraterna e comunitária
O espírito fraterno e comunitário foram virtudes de Kalil e Badia. Auxiliar o próximo e construir uma comunidade mais humana foram valores expressados em gestos e obras. Os filhos Miguel e Jorge abraçaram os ensinamentos e realizaram várias ações comunitárias. A história registra Miguel colaborando na construção do Abrigo de Menores São José e no atual prédio Recreio da Juventude, entre outros. Jorge Sehbe, presidente do Rotary Club e permanente colaborador, mantinha doações de roupas em lã para o lar São Francisco de Assis.
Kalil Sehbe evoluiu no trabalho intenso. Muito bem poderia se engajar num outro propósito. Para quem empreendeu longas travessias oceânicas, afastado das más inclinações, triunfou naturalmente nas ações voltadas ao bem. Em Caxias do Sul, cidade que viu e ajudou desenvolver, nunca criticou de forma depreciativa. Concentrou-se nos princípios superiores de sua alma libanesa e simplesmente realizou seus sonhos, edificando, construindo permanentemente.
O expressivo poeta libanês Gibran Kalil Gibran, num de seus eloquentes poemas escreveu: "O trabalho é o amor feito invisível. E se não podeis trabalhar com amor, mas somente com desgosto, melhor seria que abandonásseis vosso trabalho e vós sentásseis à porta do templo a solicitar esmolas daqueles que trabalham com alegria (...)".
Kalil Sehbe trabalhou com alegria, com amor e compartilhou sua obra com milhares de pessoas. O relatório que assinalou o cinquentenário de atividades das Organizações Alfred, publicado em 1977, traduz coerência com estas virtudes de Kalil na capa: "Uma história que se veste de amor". No ano em que morreu, as empresas agregavam 2.283 colaboradores.
Relatos do bisneto Pedro Horn Sehbe
Em 1961, Kalil recebeu o título de Cidadão Caxiense. Na Praça João Pessoa, em São Pelegrino, foi inaugurado um busto em 1986. Em Torres, local preferido de seus breves momentos de recreação, foi construído um hotel. Uma rua, nas proximidades do Rio Mampituba lhe homenageia.
O bisneto Pedro Horn Sehbe, que hoje administra a Loja Magnabosco, convive com atmosfera semelhante àquela que abriu mercados para Kalil. No departamento de tecidos, Pedro decorou o ambiente com antigas máquinas de costura, das quais uma pertenceu a Badia Abizaid Sehbe.