Um torcedor perdeu meio dedo da mão, mordido por um adversário feroz. Um motociclista, não conseguindo vencer uma esquina, invadiu uma casa na Rua Sinimbu pela janela. Meninas do vôlei do Ginásio São José foram proibidas de usar calção, por ser considerado "imoral". Pombos-correio mudaram de rota e invadiram um apetitoso milharal durante uma prova de columbofilia entre Ana Rech e a chácara dos Eberle. Os desconhecidos "guides" com brocas no solado para as provas de "pedestrianismo" redundaram em fiasco. O prefeito Euclides Triches teve a inédita – e rara – iniciativa de decretar "ponto facultativo" no sábado. O bispo Dom José Barea deu a bandeirada de largada e chegada da prova de ciclismo, vencida pelo ícone Charles Lamb.
Todos esses episódios pitorescos, lembrados pelo radialista e professor Nestor Gollo (1928-2009) em um crônica no Pioneiro de 2002, marcaram os três dias e três noites das Olimpíadas Caxienses, realizadas em 15, 16 e 17 de agosto de 1952. Sim, a Pérola das Colônias entrou no espírito dos jogos muito antes da passagem da tocha olímpica pela cidade, no início deste mês.
O adeus ao ídolo do ciclismo Charles Lamb
Francisco Michielin: "E nós tivemos Olimpíada"
Finalizadas as Olimpíadas de Helsinque, na Finlândia, a Caxias do Sul de 64 anos atrás estava ansiosa com o início do certame organizado pelo Departamento de Esportes da Rádio Caxias, comandado por Gollo. A proposta era ousada: reunir as mais variadas – e até pouco conhecidas – modalidades esportivas desenvolvidas na cidade e nos distritos, além do maior número possível de associações, clubes, entidades e agremiações.
Dito e feito: futebol, basquete, vôlei, atletismo, tênis, natação, ciclismo e pingue-pongue dividiram a atenção do público com aeromodelismo, bocha, tiro e caça, xadrez, patinação, bridge, columbofilia e até automobilismo – aliás, a prova mais aguardada, vencida por Valdir Pirovano e seu Ford Taunus Nº 30.
Passado o desfile olímpico das equipes e delegações pelo Largo da Catedral Diocesana, as provas ocorreram no antigo 3º Grupo de Canhões Automáticos Antiaéreos 40mm (quartel), nas piscinas do Clube Caxiense de Natação (absorvido posteriormente pelo Juvenil) e em diversos outros estádios, canchas, campos e sedes campestres espalhados pela cidade.
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Foi no quartel, por exemplo, que Walderez Pisani De Zorzi, então com 17 anos, competiu em diversas modalidades. No atletismo, conquistou o primeiro lugar nas provas dos 100 metros rasos, deixando para trás as competidoras Cristina Brugger e Joana Paion. A vitória veio também no revezamento 4 x 100 – juntamente com Nilva Balen, Jandira Bonetto e Iole Mosele – e no arremesso de peso. Walderez abocanhou ainda o segundo lugar no salto em distância e arremesso de dardo, e o terceiro no salto em altura.
– Quanto mais modalidades participávamos, mais pontos a equipe fazia – lembra a professora aposentada de 81 anos, que disputou o certame defendendo a ala feminina do Flamengo.
Treinada pelo sargento Argemiro, a ex-atleta recorda-se perfeitamente dos 100 metros rasos.
– A largada foi dada com um tiro, eu saí em disparada e acabei queimando a prova – ri, lembrando-se do nervosismo ao ter de repetir a corrida.
Dona Walderez também aparece no filme original da época, vencendo a prova (veja abaixo).
Pulando alto
Pelo quartel também passou o ex-jogador de vôlei Adelino João Cirena.
Integrante do time do Senai, o jovem de 1,86m treinava todos os dias na cancha de areia do clube. Na linha de frente eram poucas (ou nulas) as bolas que passavam alheias ao cortador.
– Eu pulava muito! O fato de sempre treinar na cancha de areia fazia com que eu subisse mais na quadra de piso – lembra.
A equipe, liderada pelo treinador Mazzotti, foi a vencedora da modalidade, dentre as 14 participantes. A final foi realizada contra o time do Colégio do Carmo, quando jogaram também Oscar Triches, Oberecy Gonçalves, Alzir Barão, Leonildo Barão e Bruno Prá.
Aos 86 anos, o ex-jogador lembra do clima alegre que levou milhares de pessoas a assistir às competições no quartel. Entre tantos incentivadores, destaca o esforço de uma pessoa em especial: Nestor José Gollo, o responsável pela "festa", como os participantes definem o feito até hoje.
– Além de ser um locutor fora de série, com uma voz limpa e aveludada, ele foi um baita idealizador, estava sempre presente – recorda.
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Esportistas desde sempre
Devido à agilidade, Walderez Pisani de Zorzi foi convidada para ser atleta do Grêmio, em Porto Alegre, onde treinou por alguns meses após o fim das Olimpíadas. Porém, a trajetória da professora não cessou no atletismo: Walderez gostava mesmo era de jogar vôlei.
Com as amigas e também integrantes da ala feminina do Flamengo Branca Piccoli Peruccini, Zilda Schio Falavigna, Eni Soldatelli, Zila Bonetto e Aidé Bedin Sperandio, a levantadora costumava treinar nas quadras do Banco da Província, do Senai e do 3º Grupo de Canhões Automáticos Antiaéreos 40mm, atual quartel. Tamanho empenho das atletas resultou na conquista do primeiro lugar na modalidade.
– Fizemos o melhor que a gente pôde, o resto foi uma curtição sem explicação – lembra.
Para a jovem, os jogos serviram como uma forma de superação e, claro, diversão:
– Foi uma verdadeira festa, três dias em que a cidade parou.
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Vida atrelada ao esporte
O esporte também fez parte da vida da professora aposentada Zilda Schio Falavigna, 82 anos, amiga e ex-companheira de time de Walderez. Agora moradora de Flores da Cunha, dona Zilda recorda da época em que residia na Rua Feijó Junior, no bairro São Pelegrino, e frequentava os jogos de futebol do Grêmio Esportivo Flamengo juntamente com o pai, o "fanático" Leongrin Schio, e a irmã Zamilda.
Grêmio Esportivo Flamengo, Inter e um corte de cabelo em 1958
Foi defendendo o time de vôlei do Flamengo que a jovem disputou o certame que movimentou Caxias em 1952. À época com 18 anos, Zilda integrava a ala feminina do clube, estudava na Escola Normal Duque de Caxias e treinava com as colegas todos os dias.
– Meu pai me incentivava a jogar por ser "doente" pelo Flamengo – lembra.Além do vôlei, Zilda também praticava tênis de mesa, inclusive havia uma mesa de pingue-pongue para ela e os irmãos brincarem no porão de casa.
Toda essa rotina de treinos e idas aos jogos do Flamengo fizeram Zilda mergulhar na área esportiva.
– De tanto gostar de esportes acabei "tirando" Educação Física e lecionei até me aposentar – revela.
Estrutura na Praça
A pira olímpica, situada a uma altura de 12 metros defronte à Catedral Diocesana, foi guarnecida por um pelotão de escoteiros durante três dias e três noites. O fogo chegou de São Sebastião do Caí e foi saudado por uma banda de clarins e pela Banda do Colégio Nossa Senhora do Carmo.
Já a chama foi acesa pelo escoteiro João Carlos Cerqueira, de oito anos (o menino da foto acima, mais ao alto).
Acrobatas alemães agitam o centro de Caxias em 1957
Oscar Boz, o cineasta das Olimpíadas Caxienses
Oscar Boz tinha 32 anos em 1952. Com uma câmera portátil, costumava filmar festas e reuniões de família, passeios e, vez por outra, o movimento do Centro. Nos dias 15, 16 e 17 de agosto, registrou praticamente na íntegra toda a movimentação das Olimpíadas Caxienses, desde a passagem das delegações até as provas no quartel e nas piscinas do Juvenil.
Mas o destaque de toda essa cobertura foi a "eletrizante corrida automobilística", cujo roteiro incluía a largada defronte a Catedral, a descida pela Rua Garibaldi e pela Av. São Leopoldo rumo à BR-116, com retorno pela Os Dezoito do Forte e novamente pela Sinimbu.
Toda essa magia do passado chamou a atenção do diretor Jorge Furtado em 2003, quando os filmes originais de seu Oscar deram entrada na Casa de Cinema de Porto Alegre. Na época, o material serviu de matéria-prima para um emocionante curta-metragem sobre a família.
Oscar Boz: Aprender e Ensinar, dirigido por Furtado, foi um dos episódios da série Umas Velhices, do Sesc São Paulo. Com a recuperação e digitalização pela Casa de Cinema, o conteúdo também passou a integrar o acervo do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami. Um documento histórico precioso, que Caxias aos poucos começa a redescobrir.
Ah, sim, na última semana, seu Oscar celebrou 96 anos, recordando de seus tempos de cineasta amador e, logicamente, das Olimpíadas Caxienses...
Oscar Boz registra a infância dos filhos entre 1952 e 1955
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Oscar Boz filma os acrobatas alemães na Praça Dante em 1957
Lembranças de Nestor Gollo
Em 2002, por ocasião do aniversário de 50 anos das Olimpíadas Caxienses, Nestor Gollo (in memoriam), recordou, em artigo publicado no Pioneiro, como a cidade se comportou em agosto de 1952:
Foram três dias plenos que movimentaram milhares de atletas, centenas de dedicados colaboradores e dezenas de estádios, canchas, raias, pátios, ruas, céus e terra, tudo gravitando em torno dos Jogos Olímpicos. Desde a Chama Olímpica, que partiu de São Sebastião do Caí, nossa célula-mãe administrativa, rumando pela antiga subida da Serra, hoje decantada – e bem lembrada – "Estrada dos Imigrantes", até os "Cinco Círculos Olímpicos", majestosamente iluminados em altiva pira, zelosamente guardada pelos escoteiros e escoltada pelas dezenas de bandeiras de todas as entidades, clubes, associações, grupamentos, colégios e particulares, tudo se somou e se associou na cidade e seus arredores. A colaboração foi irrestrita e sem dimensões. A Eberle cunhou as medalhas (leia-se Bruno Segalla) em ouro, prata e bronze; a Taça Magna (conquistada com méritos pelo Aymoré) era em prata 90 e os diplomas, hoje amarelecidos, foram confeccionados pela Editora Globo de Porto Alegre. A comunidade inteira se uniu e colaborou. A ZYF-3 Rádio Caxias, que a tudo comandou e cobriu, ficou-lhe reservada a glória de um resultado inédito e triunfante.
Os vencedores
Somando mais de 700 pontos, o Aymoré Futebol Clube foi o grande vencedor da Olimpíadas Caxienses de 1952. Em segundo lugar ficou o 3º Grupo de Canhões Automáticos Antiaéreos 40mm, seguido pelo Grêmio Esportivo Flamengo e pelo Colégio Nossa Senhora do Carmo.
O fotógrafo
Mauro De Blanco foi premiado com a medalha e o diploma de "melhor foto-imagem das Olimpíadas Caxienses de 1952". Naquele mesmo ano, o fotógrafo havia captado o flagrante do incêndio da Ferragem Caxiense, com o busto de Dante Alighieri em primeiro plano.
A imagem, que ficou conhecida como "O Inferno de Dante", é uma das mais premiadas e famosas do profissional.
Mauro De Blanco e um incêndio no centro de Caxias em 1952
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Agradecimento especial a Maria Luiza Boz, Francisco Michielin e ao Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.