Faqueiros, pratos, baixelas, jarras e diversos outros utensílios de cozinha, típicos presentes paras as senhoras "do lar", estamparam vários anúncios da Metalúrgica Abramo Eberle nas páginas do Pioneiro de 1968. Mas um outro fato, que poucos lembram, ganha dimensão extra neste final de semana.
Naquelas semanas que antecederam o segundo domingo de maio de 48 anos atrás, as famosas vitrines do varejo do Eberle, no térreo da Rua Sinimbu, receberam uma campanha "diferente".
Dona Ercília Moreira dos Santos, negra, doméstica e babá na casa do gerente Enio Arioli, estampou a foto principal da vitrine do Dia das Mães, tendo nos braços o filho caçula de seu Enio, Vicente José Arioli, de pouco mais de dois anos. Foi o combustível para dividir opiniões entre clientela, passantes e curiosos, além de colocar em xeque uma série de padrões da época.
O jubileu de prata de Enio Arioli em 1968
O professor de Física Alexandre Arioli, filho mais velho de seu Enio, tinha 15 anos em 1968. E recorda do descontentamento do pai ao se aproximar o Dia das Mães. Não pela data em si, mas pela monótona repetição das homenagens nas vitrines do comércio caxiense. Segundo lembra Alexandre, invariavelmente eram cartazes colados, muitos deles com apelo religioso.
– Quando representava-se a figura da mãe, ela tinha de ser branca. Meu pai não concordava com isso, pois queria a mãe real. Lembro da alegria dele quando encontrou a resposta na "Mãe Negra", representada pela querida dona Ercília – recorda – A vitrine teve grande impacto por ser a primeira a apresentar uma pessoa negra e uma mãe mulher, contrariando o padrão da época, quando a mãe era representada pela Virgem Maria.
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Mães de leite
Adriana Arioli, irmã de Alexandre, era criança na época, e recorda de uma sensação de contentamento dos pais. Professora de Língua Brasileira de Sinais, ela conta que a vitrine foi motivo de orgulho em família.
– Creio que a intenção era justamente fazer uma provocação sobre as possíveis formas de maternidade. Lembro de algumas conversas da minha mãe, Ada, falando que mãe não é necessariamente a de sangue. E a foto representa bem isso. Acho que o argumento do meu pai para utilizar a imagem dialogava com as "mães de leite". A proposta era ser uma homenagem a elas. Tudo foi feito com a concordância e apoio da minha mãe, inclusive com a participação dela em termos de criação – completa a filha.
Alexandre corrobora a antiga intenção do pai:
– Lembro de ele falar que era justa e necessária essa homenagem, pois por este Brasil afora muitas mulheres negras foram mães dos seus filhos e dos filhos dos outros, cuidaram e amamentaram como se fossem seus. Claro que a vitrine foi de grande impacto e polarizou opiniões, favoráveis e contrárias. Não houve meio termo.
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O fotógrafo
Apesar de não haver registros da repercussão em jornais da época – e poucas atendentes do varejo lembrarem dessa vitrine –, um funcionário em especial recorda bem daquela campanha. Trata-se de seu Lydio Provin, 85 anos, o fotógrafo da imagem.
Atuante nos setores de adamascado e fotogravura da metalúrgica, Provin eternizou dezenas de campanhas publicitárias do varejo, mas foi muito além.
– Eu fazia fotos dos produtos, dos catálogos, dos informativos internos, das cerimônias oficiais, das visitas de misses e rainhas da Festa da Uva, andava de teco-teco para as vistas aéreas, enfim, registrava tudo que acontecia no cotidiano do Eberle. No caso dessa foto, lembro que trouxeram a dona Ercília e o menino Vicente para o estúdio fotográfico, que ficava no último andar. Ligamos as luzes, o menino não chorou, foi tudo muito rápido – recorda seu Lydio, que trabalhou na empresa de 1951 até meados dos anos 1980, sendo jubilado em 13 de julho de 1976 pelos 25 anos de "préstimos ao Eberle".
Sobre o ineditismo da foto, ele reconhece que não era muito comum esse tipo de abordagem:
– Naquela época, eram brancos de um lado, negros de outro.
Uma quebra de paradigmas, que seu Enio Arioli idealizou, a vitrinista da época, Liria Haas, concretizou, e a família sempre fez questão de recordar.
– Meu pai foi ousado, inovador e corajoso – orgulha-se o filho Alexandre.
Após o término da campanha, o poster com a fotografia foi doado para dona Ercília – mas o destino dele e de sua protagonista é uma incógnita. Personagem principal de toda essa história, dona Ercília teria falecido há cerca de 10 anos, conforme relatos da família Arioli e de dona Norma Caffi, outra amiga da época.
Até o fechamento desta edição, porém, a reportagem não havia conseguido localizar parentes ou descendentes da senhora. Quem sabe, a partir da publicação deste sábado, todo esse "roteiro de filme" não ganha um novo capítulo?
Para recordar de Dona Ercília e das vitrines do Eberle nos anos 1960
O menino da foto
Filho caçula do casal Enio e Ada Arioli, Vicente José Arioli, 50 anos, nasceu em 12 de novembro de 1965. E, a exemplo dos irmãos Alexandre e Adriana, participou como modelo fotográfico em várias decorações temáticas do varejo do Eberle, entre elas a do Dia da Mães de 1968.
Morando na Alemanha há 26 anos e atendendo a um pedido da reportagem, enviou uma selfie ao lado de sua imagem de 48 anos atrás, no colo de dona Ercília. Se o "garoto" não tem recordações da época da foto em si, sobram lembranças posteriores de sua infância na década de 1970.
– Dona Ercília trabalhou muitos anos como doméstica para a nossa família em Caxias, auxiliando minha mãe nos trabalhos de casa. Morávamos em um sobrado na esquina da Avenida Júlio de Castilhos com a Guia Lopes, com um belo pátio repleto de árvores frutíferas e uma enorme araucária. No térreo morava minha avó Giselda Argenta, e nossa família habitava o andar superior. Uma das lembranças mais marcantes eram as massas caseiras de minha avó, algo inesquecível. Caxias era uma cidade muito pacata naquela época, onde se podia brincar e circular nas ruas com muita tranquilidade. Hoje, quando visito a cidade esporadicamente, me entristece ver os efeitos da exploração imobiliária. Os belos casarões deram lugar a arranha-céus de valor arquitetônico no mínimo duvidoso. Mas esse é um fenômeno típico em várias cidades brasileiras – lamenta Vicente, que atua como gerente de produtos em uma empresa que desenvolve games para a web e AppStores, em Berlin.
O "modelo de 1968" recorda também dos tempos do varejo, uma atração turística que marcou época:
– O ambiente era requintado e o serviço prestado, excelente. Um exemplo era o empacotamento dos produtos, uma verdadeira obra de arte. Assim como a decoração das vitrines.
Vitrines que fizeram parte, também, de sua própria história.
Semblante sereno
Em diferentes épocas e contextos dos anos 1950 e 1960, os três filhos de seu Enio Arioli participaram de várias campanhas publicitárias do varejo do Eberle. Foi o período em que Alexandre, Adriana e Vicente conviveram bastante com dona Ercília.
Natural de Cazuza Ferreira e antiga moradora do bairro Jardelino Ramos, ela trabalhou na casa da família desde meados da década de 1950 até a mudança dos Arioli para Porto Alegre, por volta de 1975, quando seu Enio assumiu a direção de vendas do Eberle para a região Sul.
Das lembranças de Alexandre Arioli, a mais forte diz respeito aos "causos" de Ercília:
– Ela era uma mulher de fibra, batalhadora e correta em todos os sentidos. Também gostava de ouvir e contar histórias. Nós nos encantávamos com isso.
Conforme Adriana, dona Ercília auxiliava nos trabalhos domésticos e cuidava das crianças, sua principal atividade.
– Por um período, não sei exatamente por que, a filha dela, Tereza, foi minha babá. Mas não lembro se ela teve outros filhos. Quanto à sua idade, penso que, em 1968, estava na faixa dos 40. Difícil dizer, pois para uma criança alguém com 25 anos pode parecer "mais velho". Sem dúvida, a imagem que mais recordo de dona Ercília é seu semblante sério, mas sereno. Era uma pessoa bela, que emanava sabedoria, da forma como aparece na foto.
Histórias compartilhadas no Arquivo
Toda essa história, que mexe com a memória das milhares de pessoas que passaram pelo Varejo do Eberle, surgiu a partir da socialização de duas fotografias particulares.
Cedidas ao Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami pelo professor Alexandre Arioli, filho de seu Enio Arioli, as imagens de dona Ercília e do menino Vicente na vitrine passaram a integrar o acervo da instituição, servindo como fonte de pesquisa e compartilhamento de histórias.
Uma atitude que dialoga com o pensamento da diretora do Arquivo Histórico, Elenira Prux, em recente entrevista ao Pioneiro.
– Aos poucos, as pessoas foram percebendo que um documento ou uma fotografia doado ao Arquivo e disponível para a pesquisa pode fazer parte de um livro, de uma exposição, de uma reportagem jornalística. É muito gratificante quando uma pessoa encontra uma foto/documento de sua família e que nem imaginava ter sido preservado no Arquivo, porque em algum momento alguém resolveu retirar de suas gavetas ou armários e socializar aquela informação – apontou Elenira.
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Cores da Benetton
Guardadas as devidas proporções, é impossível não relacionar a imagem da "Mãe Negra" do varejo do Eberle, como a foto ficou conhecida, com as polêmicas campanhas da grife italiana Benetton, cerca de 20 anos depois.
Produzida pelo fotógrafo e diretor de arte Oliviero Toscani, a série The United Colors of Benetton foi uma marco na publicidade de moda. Gerou, inclusive, um livro, A Publicidade é um Cadáver que nos Sorri, em que Toscani condena a atual publicidade – segundo ele, "rosada, saudável, jovem, vendedora de um estilo de vida tão idiota quanto irreal".
Um dos mais famosos anúncios da campanha The United Colors of Benetton para promover a igualdade foi feito em 1989. A foto de uma mulher negra amamentando uma criança branca (acima) foi uma das mais premiadas da marca e causou polêmica, principalmente nos Estados Unidos.