Fui atingida pela força transformadora da palavra ainda na primeira infância. Ela veio até mim como um raio num dia de sol, totalmente inesperado e improvável. E foi a partir dela que concebi a realidade, suas profundezas e suas brevidades. A escrita é o filtro pelo qual interpreto o mundo, e ela é, também, o produto de tudo que vejo e sinto.
Uma mulher de e das palavras, é o que sou. Mantenho-me firme perante a existência, respeitando a estrada que me trouxe até aqui. Releio diariamente a epígrafe e cada capítulo que escrevi para mim até hoje e tenho orgulho da história que tenho narrado. Não sou uma mocinha da era romântica da literatura; vou longe dela, mas Machado de Assis poderia, sim, ter criado uma criatura-personagem como eu.
Uma personagem densa e cheia de camadas. Talvez, uma escritora prestes a ter uma síncope nervosa num livro narrado em primeira pessoa, como Brás Cubas. Uma mocinha Machadiana que sente dor, mas não chora, que, na tristeza, sorri e tem afeto de sobra, mas tem medo de demonstrar. Essa sou eu, segundo meu delírio literário.
Na vida real, é importante frisar que a palavra me salvou dos calvários da vida, de representar as estatísticas socioeconômicas brasileiras de classe-gênero-etnia e, sobretudo, me salvou e salva todos os dias de mim. Lendo e escrevendo, fui elaborando planos de fuga à medida que conseguia adentrar em meus labirintos e vislumbrar novos caminhos. Caminhos esses que muitas vezes não me levaram a lugar algum, mas pude seguir em frente, o que já é vitória.
Foi por meio da palavra e da compreensão que ela me entregou sobre a vida que pude entender do que eram feitas as terras que meu corpo habitou, suas mazelas e alegrias, seus tempos áridos e de colheita.
Cada romance, crônica, poesia ou conto que li aproximou-me intimamente das vidas extra-eu. Pude assim, entender mais de mim e do outro, e isso aliviou a carga de existir por mais vezes que posso mencionar. Fui acumulando sensibilidade a cada verso lido, encontrando as dores alheias no arder das minhas e a humanidade, em efeito implosão, foi me tornando exímia modelo de gente que sangra e cicatriza.
A palavra me acompanhou dentro de noites infinitas. Ela conduziu minhas lágrimas para fora do corpo e faxinou as minhas gavetas emocionais, narrou meus amores — não ou mal — vividos, e, também, tudo o que foi alegria e esperança. A palavra pariu minha filha e a entregou em meus braços para que, com palavras, eu a criasse.
A palavra sempre me fez companhia. Uma solitária e deliciosa companhia. Passei a vida a esperar que a casa dormisse para que eu pudesse perambular na penumbra, passeando pelos cômodos dotada de grande poder de liberdade, encontrando minha própria narrativa em cada canto.
São noites em claro, dando à luz a cada palavra que se cria em meu ser. Fico prenha de histórias e poemas, de reflexões e revoltas. Eis que a contração chega, meu peito se abre e as palavras vão nascendo, uma a uma. Assim, vou me firmando como criadora-criatura numa narrativa em espiral, onde eu escrevo e sou escrita.