Em O Auto da Compadecida, livro magistral de Ariano Suassuna, o personagem João Grilo tem uma fala que eu nunca esqueço. Ali, ele diz: Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher. Pois é, João, diferentemente de você, fui menina, sou mulher e tenho sido até homem, também. Mas, eu queria mesmo era ser flor, sabia?
Tenho sido homem e não é por querer, por prazer, tampouco. Não no sentido literal, digo figurativamente. Tenho agido como homem por necessidade. Sentando cotidianamente naquela cadeira da grande voz da ordem, desconsiderada às mulheres, e tenho mantido uma firmeza besta que as pessoas amam.
Eu não queria e nem vejo necessidade em ser dura com quem me cerca, mas percebi há tempos que quando entrego minha doçura ao mundo recebo de volta tão somente desrespeito. Daí, acordo todos os dias e visto minha carranca e saio pelas ruas.
Carrancuda, sigo a vida. Em bem articuladas frases curtas e reuniões longas, vou construindo meu castelo. Uma construção sólida que podia ser erguida de uma forma mais feliz, mas não: não há muito espaço para afeto e sensibilidade dentro do universo executivo, ainda mais se eles vêm de uma mulher.
De uma forma geral, na sociedade não há muito respeito às mulheres que sentam, simultaneamente, nas cadeiras do feminino e do masculino. Mães solo, como eu, por exemplo, existem dentro de uma imensa complexidade emocional por não darem conta dos múltiplos papéis que a criação de gente exige.
Não quero ser homem, nem pai. Quero somente ser a mulher-mãe-executiva que me habita e foi construída a duras e invisíveis penas. Almejo ser ela com toda sua força, afeto e capacidade. Um dia ainda viverei tudo o que há de belo nela e, dela foi arrancado.
Sumariamente, anseio o que herdei das minhas ancestrais e nunca me foi entregue: a coragem e a ausência do medo. Que, sim, são coisas díspares. O gigante Nelson Mandela, nosso Madiba, disse uma vez: a coragem não é a ausência do medo, mas o triunfo sobre ele.
Tenho passado os dias a olhar dentro dos olhos dos meus medos, dos meus monstros, tentando entender o cerne dos meus fantasmas e assombrares. Quando o medo se agiganta e o monstro é muito assustador, subo em seu lombo e vou toureando-o até a vitória.
Eu estaria mentindo se dissesse que sou íntima da vitória, não sou. Tenho tido mais derrotas que qualquer outra coisa. Mas, cubro minhas derrotas de afeto a cada anoitecer para que durmam aquecidas e saibam que as amo e, sobretudo, as valorizo. Minhas derrotas são minhas filhas menores, preciso cuidar delas, chorar seus choros e rir seus risos.
Só eu sei que sou mais completa hoje, infinitamente mais corajosa, e tão mais pronta para enfrentar o que há no porvir. Tudo dedico aos medos e às dores de ontem que superei.
Me vejo como terra que precisa de atenção. Estive árida, mas, ainda, sim, frutifiquei. Estou em adubação agora, há um jardim imenso a crescer dentro de mim. E eu vou florescer como a flor feminina que sou, estou certa disso.