Não canso de me espantar com as redes sociais. Não bastasse serem veículos de confrontos ideológicos radicais, em que a regra é desumanizar e aniquilar o discordante, também estão virando espaços de lavação de roupa suja em público. Já era o velho ditado: a onda agora é expor nas ruas virtuais assuntos da esfera íntima. A loucura é tanta que muitos acreditam que não nomear os desafetos basta para preservar uma mínima discrição em seus velados desabafos. Nem percebem que estão a escancarar suas próprias sombras, disfarçadas de prudentes conselhos aos outros.
Sei de uma mulher que descasou-se já há um tempo considerável, não por vontade dela, mas ainda vive a postar indiretas plenas de ressentimento ao ex. Para compensar o sentimento de rejeição, ela escreve coisas como: “um dia as pessoas que te desprezaram vão reconhecer o seu valor, mas aí será tarde demais para elas”. Noutras postagens, ela assume a vingança e decreta: “a lei do retorno nunca falha, ainda veremos sofrer quem um dia nos feriu”. Cheia de supostos bons ares espirituais, também divulga: “Deus, obrigado pela alegria de viver”.
Ah, quanta mentira! Como eu sei um pouco do tormento dessa pessoa, percebo facilmente as emoções ocultas no discurso dela. Torço para que ela supere logo sua dor e se abra de verdade para a alegria de viver. Mas fico preocupado com o aumento desse tipo de postagem, ao menos nas redes em que navego. Não sei nada da intimidade de quem publica, só sei do tom moralista e desencantado das mensagens. Uma pessoa alerta para a ingratidão dos que um dia já foram ajudados na subida; outra sugere negar amparo a qualquer um, pois serpentes não costumam poupar nem quem as alimenta. Gente!, pelo teor desses pensamentos, a humanidade não vale nada mesmo, e o melhor é desconfiarmos de tudo e de todos.
Fico pesaroso com esses “minutos de sabedoria” ao contrário, pregando conselhos que reforçam o pior do humano. Sei, também somos feitos de sombras, também somos bichos instintivos, capazes de monstruosidades, haja vista horrores passados e presentes. Mas não podemos jogar a toalha e ir à lona, vencidos por nossos interiores demônios. Pois temos um pacto civilizatório a zelar, esse silencioso acordo com nosso próprio íntimo e com nossos semelhantes no sentido de preferirmos sempre a paz, o respeito, a justiça, o amor – esses claros indicadores do que é superior e divino em nós. A história já mostrou o que ocorre quando desprezamos esses princípios.
Em meio a tanta alucinação nas redes sociais, eu deveria ignorar tais mensagens tingidas por emoções escuras. Contudo, lembro que comunicação é pilar e espelho da sociedade. Assim, a desistência do respeito aos outros, implícita nas redes de comunicação, está a espelhar um desprezo ainda maior, pois que social, pelo humano. É mais um sintoma desses tempos que perigosamente reeditam valores de doutrinas de destruição como o fascismo e o nazismo. E convém lembrar que tais sistemas de necropolítica só floresceram pelo apoio em massa de supostos cidadãos de bem que não souberam lidar com os próprios ressentimentos.
E aqui volto à mulher citada antes. Sei que já recomendaram a ela alguma terapia, alguma forma de ela aceitar o fim do casamento e reinventar a própria vida, mas ela, defensivamente, nega ajuda. Então, presa na própria mágoa, prefere dar “conselhos” de pretensa superioridade moral em redes sociais e desancar a humanidade. Sei não, talvez o futuro de nosso pacto civilizatório dependa muito do modo como ela, você e eu possamos lidar com nossos sentimentos mais ocultos. Cada indivíduo é célula do tecido social.
Quisera humanos feridos se juntassem em rede somente para buscar curas ou modos de suportar as travessias. Mas não, também podem se unir em perigosas revanches – e o perigo: nem sempre contra quem os feriu, mas contra os bodes expiatórios mais próximos.