Por conta de uma mudança de casa, recentemente tive que esvaziar uma cômoda atulhada de papéis. Aproveitei a forçada desarrumação para descartar o que já tinha perdido o sentido, fossem extratos, jornais, revistas, postais, pôsteres, impressos encadernados, e percebi que essa pilha do agora sem valor ficou enorme. Resultado: só se salvaram uns 10 por cento do material original. Uma amiga que tem lareira em casa me socorreu, levando para queimar a papelada que um dia guardei por ser importante.
Evoco essa cena cantarolando uma velha canção dos Paralamas: “Eu hoje joguei tanta coisa fora / Eu vi o meu passado passar por mim / Cartas e fotografias, gente que foi embora / A casa fica bem melhor assim”. Sob o astral do Sol em Escorpião, signo dos expurgos e desapegos, experimento a boa sensação de espaço para o novo após o faxinaço dos antigos e outrora valiosos papéis. Engraçado isso: desapegar é tão bom quanto guardar, ilustração perfeita da relação entre o essencial Escorpião e seu oposto, o cumulativo Touro.
Sim, minha Lua taurina não demora vai voltar a guardar coisas, cacarecos, papéis, muitos papéis, até que um dia outro expurgo se imponha. Pois não adianta: sou assumidamente gráfico, um ser gutenberguiano, moldado entre páginas impressas. Concordo com o Jorge Luis Borges: o paraíso deve ser algo parecido com uma gigantesca biblioteca. Em meus anos de infância, minha ideia de êxtase se revelava diante de uma sortida banca de revistas ou das prateleiras de alguma livraria. Se você pensa que meu coração é de papel, acertou.
Como disse, sou um gutenberguiano. O mundo aberto pelo alemão Gutenberg quando da invenção da máquina de imprimir, em meados do século 15, me forjou em suas derradeiras reverberações no século 20. Ah, foi uma avalanche sem igual os primeiros tempos de livros impressos. Já em 1500, numa Europa de 100 milhões de habitantes, circulavam 13 milhões de livros. Não foi à toa outra era histórica se iniciar naquela quadra de tempo já bafejada pelos ideais humanistas do Renascimento e pelo expansionismo mercantil. Muitos estudiosos afirmam, e eu assino embaixo: Gutenberg nos criou.
Até surgirem o rádio e a televisão como veículos de comunicação de massa, já no século 20, foram os jornais impressos, as revistas e os livros os canais de informação e formação. No livro Metrópole à Beira-mar, em que aborda a modernização da cidade do Rio de Janeiro nos anos 1920, Ruy Castro expõe em detalhes a vida cultural e os hábitos da população ao sabor da imprensa e das agitações literárias. Tempos de papéis, em que textos eram fixados em páginas impressas, e tudo parecia sólido, como se aquela vida fosse durar para sempre.
Mas eis que surge a internet, e se propaga mundialmente já no alvorecer do século 21. E a galáxia de Gutenberg é reinventada, e outro mundo, e outro homem, gestam-se aceleradamente. Às vezes acho uma bênção poder testemunhar uma transformação histórica desse porte, embora saiba o quanto é duro lidar com as desorientações inerentes ao movimento. Tudo agora é tela, é virtual, é rápido demais e efêmero demais. Olhe agora, clique agora, antes que seja tarde.
Oriundo de uma cultura do papel, como jornalista pude trabalhar talvez no ápice do formato impresso antes do abalo do virtual. De tão condicionado ao tátil contato com o produto a ser visto e lido, sigo preferindo ler no papel. Chego ao ponto de imprimir textos grandes, por resistência a ficar rolando telas no celular ou no computador. Ok, sei que preciso me atualizar. Afinal, tudo é vertiginoso hoje. Se nem deu tempo de lamentar o fim das bancas de revistas e das próprias revistas, ao menos os livros seguem bem — ainda bem.
Ó Santo Johannes Gutenberg, rogai por nós, esses devotos teus de coração de papel e alma atarantada. Que ainda dure entre nós o toque da página, o cheiro da tinta, os tipos pretos a dançarem...