Cismar mirando estrelas: eis uma atividade tão antiga quanto o homem. A abóbada celeste pintalgada de luzes envolvendo desde alturas infinitas a noite escura terrestre exerce um natural fascínio sobre nós. Quando sossegamos o corpo, e a mente, também mais quieta, se abre a uma observação mais atenta a tudo, o próprio mistério da vida nos enreda a partir do espetáculo sideral. Não há como não viajar no cosmos. E tal viagem meditativa é para fora e para dentro, rumo ao espaço aberto e rumo ao que nos habita no íntimo. Aliás, essa conexão entre o plano superior e o nosso, corpóreo, é a base da astrologia, arte ancestral que nasceu das inquirições humanas sobre as relações entre céus e terra.
Ó imaginação! Imagino agora o quanto tu mesma, como faculdade humana, deves ter te desenvolvido no exercício continuado de os primeiros sapiens fitarem o firmamento nas noites em bando, ao redor do fogo. Aqueles desenhos sugeridos lá no alto pelos pontos luminosos, caminhando lentamente no espaço... Suas aparições mudando ao sabor dos ciclos aqui embaixo, como supostas causas das próprias estações... As infinitas narrativas que iam surgindo para explicar cada constelação, cada fato mundano em conexão... E quanta poesia! Pois sim: olhar o céu, ativando a imaginação e o devaneio — e firmando uma herança ancestral inevitável da espécie —, deve ter moldado o cérebro dos sapiens para produzir poesia.
Os mitos imaginados para explicar o mundo, o homem e seus desafios não são — como soam à mente cartesiana — produções ingênuas de etapas ainda embrionárias de nossa melhor inteligência. Ingenuidade é o esperto pensamento científico desprezar a riqueza do mito. Se ainda consumimos mitologias em múltiplas embalagens artísticas é porque elas continuam a falar do que nos diz respeito, do que é mais humano em nós. Os velhos mitos nos abrem a um olhar para além das divisões e dos conflitos. Com seus paradoxos, os mitos parecem reconectar em nós o céu e a terra, como na sagrada união de antes do corte trágico que os dissociou.
Esse corte foi literal na mitologia grega, quando Cronos castrou o pai, Urano, deus do céu estrelado, afastando-o de vez de Gaia, a mãe terra. Certo, a história dos tantos deuses terá início a partir dessa cisão, mas, no paradoxo do mito, sempre precisaremos reunir Urano e Gaia, céu e terra, mente e corpo, em busca de um equilíbrio até orgânico de tão primordial. Assim, mirar o céu é curativo, mesmo que apenas nos deixemos devanear, sem a devida atenção filosófica. Algo ancestral em nosso fundo emerge, reconhecendo a ordem da união entre o acima e o embaixo. E alguma iluminação se anuncia como caminho. Se não racionalmente, certamente como poesia.
A propósito, foi o Dr. Sigmund Freud quem disse, acerca de suas intuições que desvelaram o conceito de inconsciente : “Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim”. O mesmo Freud foi buscar no velho mito grego de Édipo uma estrutura para sua teoria da psicologia infantil. Captei, doutor! Poesia e mitos, então, parecem linguagens engendradas numa mesma fonte misteriosa — o psiquismo íntimo, que vemos projetado na imensidão também desconhecida do universo. Talvez por isso olhar o céu com a mente receptiva seja uma atividade tão prazerosa e reparadora — ou ao menos o é para mim.
O poema Via Láctea, de Olavo Bilac, está entre os mais famosos da poesia brasileira. E dispensa interpretações. Começa assim: “Ora, direis, ouvir estrelas, certo / Perdeste o senso, e eu vos direi, no entanto / Que, para ouvi-las, muita vez desperto / E abro as janelas, pálido de espanto”. O poeta reconhece que o hábito de “ouvir estrelas” o torna um “tresloucado” ao senso comum. E ao interlocutor curioso sobre o que dizem as estrelas, revela: “Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas”.