Quase apelei para o recurso de pedir desculpas ao leitor e publicar aqui algum texto antigo. A cabeça em pane, as emoções destrambelhadas, as lágrimas jorrando por qualquer imagem mais forte, a sensação de revolta indefinida de alvo, tudo travava a mão no teclado ante a escrita do texto previsto. Não estou bem! Quero sumir! Mas é nessas horas que o cronista se lembra que a crônica permite uma rara sinceridade íntima, que vem a ser sua principal característica. Sempre cabe ao cronista escapar do distanciamento dos fatos jornalísticos para se expor no demasiado humano nessas ocasiões em que tudo dói. E é porque sei que uma mesma dor une os gaúchos, nativos ou adotados, como eu, a tantos milhões de irmãos solidários, que me permito, então, explorar a passagem dessa grande dor.
Embora me oprima o peito e encurte a respiração, a dor em mim não é exatamente física. A dor de que falo, e que aqui tento entender sua mensagem, é na alma, como espelho da dor mais bruta dos que sofrem diretamente com a tragédia. Ela até começa no corpo – vem do coração, sobe garganta acima, inunda os olhos e agita a cabeça –, mas me enreda mais fundo em rastros de indignação e compaixão. Ativa o espírito inteiro. É bastante óbvia essa descrição de qualquer emoção forte que nos acometa, mas parece que andamos esquecidos do óbvio. Pior: andamos displicentes demais com o que nos faz humanos. Estávamos entorpecidos, quase que precisando de algum susto despertador.
E surge o trágico, feito fúria da natureza. Meu Deus, por quê? Ainda que nem sempre pronunciada, essa questão costuma reverberar entre os que creem numa ordem superior para a vida. Já os mais céticos questionam: que Deus é esse que permite tanto sofrimento a inocentes? De um lado e de outro, transparece o anseio tipicamente humano por encontrar propósito nas imprevistas vicissitudes. Somos uma espécie que pergunta. E quase sempre a busca por sentido está por trás da força que nos move adiante e até nos mantém vivos. Agora, diante do horror que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, com fé em Deus ou com fé no próprio muque, somos todos convocados a uma mesma luta: unir-nos pela vida comum.
Tudo ainda dói. Mas é emocionante demais vermos a rede de solidariedade que se teceu no Brasil inteiro em prol do Rio Grande. São sinceros atos de afeto, de genuíno sentimento de fraternidade. E quando estamos doentes, receber cuidados já eleva nosso astral, já mostra o quanto somos amados e importantes. Ao mesmo tempo, essa rede amorosa trouxe de volta um país que acolhe e crê na partilha. Depois de tanto tempo entre trincheiras ideológicas, entre ódios e indiferenças, é como se a alma nacional, não nascida para prisões de nenhum tipo, voltasse a se reconhecer na velha e alegre irmandade e no respeito às diferenças. Por vias tortas, o Rio Grande acordou o gigante adormecido.
Na busca de um propósito para essa dura travessia, muitas questões hão de surgir. Muitos erros serão apontados para correção. Omissões e negligências terão seu tempo de análise. Fato é que a dor pungente dos gaúchos está a despertar o Brasil para mudanças sérias e urgentes nas políticas ambientais. Se há algum sentido oculto em tudo isso, quem sabe possa Porto Alegre, conhecida em toda parte pelas ideias de um outro mundo possível, ser de novo o centro gerador de luzes futuras para este combalido planeta. E desta vez com a experiência própria de sobrevivência, resistência e amor acima de tudo.
Mas por ora, apenas se cure, Rio Grande do meu coração.