Escrevo no Dia dos Pretos Velhos, 13 de maio. Até ver uma postagem numa rede social, não sabia dessa efeméride da Umbanda colada à data alusiva à Lei Áurea. Mas antes que pudesse pesquisar o assunto, deixei de lado o computador para cuidar de temas domésticos urgentes, como as goteiras múltiplas no apartamento de último andar em que moro. Foi aí que meu olhar bateu num pequeno frasco retirado de lugar por conta dos vazamentos. Arrepiei. Ali estavam as contas de uma guia que eu recebera anos atrás — de um Preto Velho!
Essa história começa em 2016. Eu fazia parte da equipe da produtora caxiense Transe Filmes na gravação da série Vento Sul, sobre habitantes de grandes cidades migrados do interior. Um desses personagens era Dona Leide, senhora de meia idade moradora da Ilha da Pintada, estuário do Guaíba, em Porto Alegre. Que mulher incrível! A casa humilde, erguida em palafita poucos metros acima das águas, dava conta de uma precária condição social em contraste com a disposição de viver e a generosidade da dona. Mestiça, viera de uma região de colonização alemã, ainda mocinha, para tentar a vida na Capital. Medo? Nunca. Dizia ela que seu guia de frente era um índio guerreiro, por isso não temia o desconhecido.
Aquela casinha frágil, que exigia atenção no caminhar pelas velhas tábuas espaçadas do chão, era sua, seu orgulho. Ali cuidara do marido doente até a morte dele — e para ela estar por perto, trabalhara como gari na ilha mesmo. Ali abrigara, certa vez, um jovem da comunidade, rejeitado pelos pais por conta da orientação sexual. A casa era como seu coração, sempre pronta a acolher. Por isso Dona Leide resistira o quanto pôde a sair dali durante uma cheia moderada do Guaíba. Da casa da filha, na cidade, não via a hora de voltar para seu canto. Um dia um vizinho avisou: a água baixou, mas a casa está cheia de cobras! E ela: volto com cobras mesmo!
Mulher de fé, Dona Leide passara por diferentes religiões, até se encontrar na Umbanda. Horas depois de nossa conversa, retornamos à ilha para gravar um ritual noturno dedicado aos Pretos Velhos, no qual ela seria uma das médiuns. Havia gente de todas as cores e idades no terreiro. Gente em busca de cura, de esperança, de amor. Entre incensos, batuques e cânticos, os Pretos Velhos, “baixados” em médiuns negros e brancos, davam passes e abençoavam peças de roupas e objetos que lhes eram entregues. Quando já tínhamos gravado o suficiente e nos preparávamos para ir embora, a mãe de santo do terreiro me disse que o Preto Velho da Dona Leide queria me ver.
Fui até ela. De olhos fechados, sem nada falar, ela assoprou fumaça do charuto em mim e deu-me um abraço caloroso. Daí tirou do próprio pescoço uma guia de sementes cinzentas e a pôs no meu. Agradeci, sem saber na hora a quem, se a ela ou à entidade. Guardei a guia por anos. Um dia a encontrei quebrada, o náilon tinha rebentado. Então pus as contas num pote e esqueci. Agora o reencontro, em meio a tanta dor no Rio Grande, no Dia dos Pretos Velhos. E penso logo em Dona Leide, em sua casinha certamente submersa, em tanta gente querendo voltar aos espaços de seus afetos, às suas querências.
Acho que devo consertar aquela guia do Preto Velho. E enquanto enfiar cada conta na agulha, como se rezasse um terço, pensarei na bondade humana, na generosidade dos humildes, na força ancestral que nos conclama a resistir pela vida. Conta junto de conta, a guia estará inteira de novo, feito a linha de fraternidade que ora une os corações compassivos.