O vozeirão de Tim Maia avisa: “Hoje é o dia de Santo Reis / Anda meio esquecido / Mas é o dia da festa / De Santo Reis”. Pela tradição católica, em 6 de janeiro se encerram os festejos natalinos. Dia de guardar as luzinhas, as guirlandas e o pinheirinho sintético, nas comunidades urbanas, e dia de desarmar o presépio e queimar a lapinha, nos recantos mais interioranos. As estatuetas dos tais reis magos, com seus camelos, são também guardadas em caixas, até o próximo Natal. Simbolicamente, que partam os exóticos visitantes por outro caminho, salvando o menino das espadas de Herodes.
Reisados, Ternos de Reis e Folias de Reis são distintas celebrações populares herdeiras da colonização portuguesa, em que, como em tantas outras, o sagrado e o profano se entrelaçam. “Cantar Reis não é pecado / São José também cantou”, entoam grupos munidos de violas, pandeiros e tambores diante das casas. Portas se abrem para os cantadores provarem petiscos e tomarem uma pinga. Fitas coloridas, estandartes e trajes finamente decorados ressaltam o festivo tom do sincretismo que marca a cultura brasileira. E vai passando pelas casas essa farra ambulante em louvor aos sábios forasteiros que souberam antecipar a vinda do santo menino.
O próprio episódio bíblico da visita dos magos do Oriente – vindos provavelmente da Pérsia, onde se praticava o zoroastrismo e a astrologia era muito desenvolvida – já ilustra o aspecto de abertura da religião que se fundava naquele nascimento. Nada de dogmas excludentes, portanto, mas assimilações que potencializassem o amor e a paz embutidos na profecia cristã. E essa própria história dos magos, célula das citadas celebrações folclóricas, seguiu séculos adiante recebendo acréscimos culturais. Os magos astrólogos viraram reis, foram reduzidos a três (o evangelho não diz quantos foram; os presentes é que foram de três tipos) e até ganharam nomes: Baltazar, Melchior e Gaspar.
No começo dos anos 1300, o mercador italiano Marco Polo, em seu célebre livro de viagens ao extremo Oriente, conta que topou com o túmulo dos reis magos na cidade persa de Sabba e que os corpos estariam miraculosamente intactos. No tom fantástico de suas narrativas, Marco Polo associa o fato de aquele povo adorar o fogo a um presente que os magos teriam recebido do menino Jesus. Quando aberto o pequeno baú, lá haveria apenas uma pedra comum, que os magos, decepcionados, teriam atirado dentro de um poço. Mas, surpresa!: uma labareda teria descido do céu até o fundo do poço, de onde o fogo mágico ardeu sem parar. A partir de então, aquele fogo, adorado, passou a purificar todos os sacrifícios.
Será que a brasileira queima da lapinha reporta a essa lenda literária? No Recife, por exemplo, perdura a tradição de queimar em público as palhas e madeiras com as quais se montou a manjedoura, ou todo o presépio, na noite deste mesmo Dia de Reis. Diante da fogueira, o povo atira nela papéis com pedidos pessoais. Na canção Festa de Santo Reis, de autoria de Márcio Leonardo, Tim Maia fala também de uma função catártica dessa festa: “Se deixar com eles / Eles levam até os bodes / É os bodes da gente / É os bodes, mééé”.
Que beleza! É uma celebração que leva embora até nossos bodes simbólicos – nossas neuroses e quetais. Um fogo purificador. E no tom fabular que cabe a essa crônica, imagino uma lapinha incandescente queimando as molduras mentais egoístas que impedem os humanos de viverem em paz com as diferenças – e de verem a estrela que aponta o amor maior.