“Depois do visto no passaporte e de um aerobus até a Praça do Comércio, foi só achar o albergue, deixar lá o mochilão e sair a flanar. Subindo da Baixa ao Chiado, o primeiro ritual: entrei na Basílica dos Mártires. Como previa, havia uma imensa imagem de Santo Antônio, para quem acendi uma vela vermelha, deixando meio euro na caixinha. Uma senhora orava com fervor, de mãos postas. Convém lembrar que o santo nasceu em Lisboa. Da igreja, subi e desci ladeiras, absolutamente tomado pela graça da cidade em seus prédios, ruelas, escadarias, portas, janelas e sacadas, tudo tão secular, tão português”.
Por acaso encontrei numa gaveta o diário de uma viagem que realizei em fevereiro de 2009, que começa com o trecho acima. Seria um trajeto longo, passando por quatro países, a começar por Portugal. Como viajava sozinho, investi no diário como forma de registro, no calor da hora, das impressões e experiências. Agora que o Sol transita por Sagitário, o signo da flecha que voa longe, reler o escrito de há tanto tempo me fez viajar de novo. Viajei na viagem. Nesse sentido, a literatura tem a ver com Sagitário, ao nos transportar, pela imaginação, a universos diferentes do nosso, ampliando nossas fronteiras. E como tenho Sagitário destacado em meu mapa, gosto também do gênero específico da literatura de viagem.
Curiosamente, um relato de viagem veio a ser a “certidão de nascimento” do Brasil pelo viés da ocupação portuguesa. A célebre Carta de Pero Vaz de Caminha narra em pormenores a chegada da frota de Cabral à Bahia, naquela Páscoa de 1500. As intenções dos navegantes já se revelavam no encontro primeiro com os indígenas: “Um deles viu umas contas de rosário, brancas: mostrou que as queria, pegou-as, folgou muito com elas e colocou-as no pescoço. Depois tirou-as e com elas envolveu os braços e acenou para a terra e logo para as contas e para o colar do Capitão, como querendo dizer que dariam ouro por aquilo. Nós assim o traduzíamos porque esse era o nosso maior desejo...”. Ai, ai, pobres inocentes nativos...
Outros relatos de viagens se tornaram também documentos sobre os primeiros tempos da colônia brasileira, como os do mercenário alemão Hans Staden. Em 1550, em sua segunda jornada no Brasil, o jovem aventureiro foi capturado no litoral paulista pelos tupinambás, que praticavam o canibalismo ritual. Entre ricas informações sobre o modo de vida dos ditos selvagens, Staden explorou também temas metafísicos. “Eles creem, de acordo com as tradições antigas, que o céu e a terra sempre existiram. Tampouco sabem qualquer coisa sobre o início do mundo, apenas contam que certa vez houve um grande mar onde todos os antepassados se afogaram. Somente alguns deles teriam se salvado numa grande barca e outros em grandes árvores. Penso que devia se tratar do dilúvio”. Uau, olha a universalidade do mito do dilúvio!
Na terra de Hans Staden, a Alemanha, meu diário de viagem chegou ao final. Era hora de voltar, cruzar pelo ar o grande oceano. Check in feito, mochilão despachado, anotei: “Espera, esperas. Surgem-me à mente fragmentos do que conheci na viagem. A espera de Anne Frank, escondida com a família, no sonho frustrado de uma liberdade que não veio. A espera dos prisioneiros nos campos de concentração, a espera da população de Berlim por uma unificação da cidade que custou tanto a chegar. Minha espera agora não é nada. Algumas horas, três aeroportos, duas rodoviárias. Berlim, Frankfurt, São Paulo, Porto Alegre, Caxias do Sul. Até a próxima, mundo”.