Não jogar fora o bebê junto com a água do banho. Gosto dessa expressão. É preciso saber separar o que é precioso de suas eventuais impurezas. Num sentido bem atual, convém preservar o núcleo profundo do humano em meio a mil facetas com as quais podemos divergir. Só que isso é o oposto do que o mundo, tornado mais radical e extremista, pratica. A onda agora é desumanizar total quem ouse não ser espelho do grupo ao qual pertencemos. Lacra. Bloqueia. Cancela. Sem chance para o que de luminoso possa haver no suposto inimigo de pensamento diferente.
E então é Natal, com os clichês comuns a todos os rituais tradicionais. E pela tradição, é tempo de paz entre os homens de boa vontade. Mas que paz? Confraternizar, como mandam as regras de convivência, parece evidenciar ainda mais as diferenças, outrora atenuadas por um agora extinto respeito. Falar em amor, como?, se o ódio tem sido a força motriz de vidas cada vez mais egocêntricas e virtuais? Melhor capitular, ver o Natal com as tintas cruas com que a sociedade mercantil o pintou: uma festa comercial, de exaltação sádica das desigualdades. Sujou geral!
Calma, gente! Nada de jogar fora o bebê com a água do banho! Até porque se celebra o nascimento de um literal bebê. Sem essa de confundir a simbologia do emergir do amor maior com o que desse mesmo princípio amoroso se desvirtuou por humanos desatinos. Se a aceleração de nosso tempo fecunda a ansiedade em corações e mentes, se o consumismo nutre o vazio e se a intolerância acentua os abismos é porque nos afastamos o máximo da mensagem do menino pobre que veio revelar a riqueza guardada em cada ser. Resgatemos o sagrado bebê, por favor.
Ok, também esta crônica não escapa dos clichês natalinos. E não estou a me desculpar por isso: pelo contrário, é com orgulho que apelo aqui à pieguice. Certas verdades, de tão simples, sempre soarão meio bregas. Mas brega mesmo é fazer pose de sofisticação e frieza e negar a voz do coração. E cá para nós, estamos com excesso de pose e falta de afeto. Vedamos nosso olhar mais desarmado e, junto, predemos num porão interno a criança antiga e alegre que insiste em nos habitar.
Faz semanas que venho reunindo, por força de sinais no cotidiano, fragmentos da mensagem natalina que ora tento compor. Partes dela fisguei na exposição de presépios em cartaz no Museu dos Capuchinhos, em Caxias do Sul. Vejam só, a mostra celebra os 800 anos da primeira encenação natalina realizada por São Francisco de Assis. Sim, tinha mesmo que vir dele, o santo que mais perto chegou do ideal de vida pregado por Jesus, essa reafirmação simbólica da origem humilde do salvador.
E a pureza desse episódio fundador do cristianismo exala de cada presépio exposto no Museu. Artesãos anônimos ou artistas conhecidos se valeram de toda sorte de materiais para esculpir, modelar, costurar, colar e pintar as peças que impactam sobretudo pela ternura. Pai, mãe, filho, anjos, animais, pastores, magos, o cumprimento de uma profecia: ah, como conhecemos essa repetida história! No entanto, sua magia está no reavivar de si mesma, com a sempre nova promessa de redenção.
Um menino nasceu para espalhar amor pelo mundo. Vão matar o homem, depois. Mas ele também sabia ressuscitar. E nascer de novo, e de novo, e de novo, a cada Natal, nessa história que nossa criança interior não se cansa de querer ouvir de novo, e de novo, e de novo. Não joguemos fora a esperança de amor, paz e vida por causa do que fizeram com o Natal. Precisamos demais desse sagrado bebê.