Começa a nascer a crônica, ao ritmo da mente e dos dedos digitadores do cronista. Antes não havia nada, apenas a página em branco na tela. Chamamos de criar o verbo que designa a ação de fazer existir algo a partir do nada. Reporta ao ato primordial divino de fazer brotar do caos, segundo uma clara vontade, a luz e o mundo e todas as coisas do mundo. Criar é humano, talvez num espelhamento transcendente do poder que associamos aos deuses.
Nossa parte animal é pouco ou nada criativa. Segue a programação dos instintos, como outras criaturas de diferentes espécies. É pouco provável que um passarinho vá inventar um outro jeito de fazer seu ninho ou que uma onça deixe de ser carnívora. A não ser, é claro (e isso Darwin há muito observou), que circunstâncias externas obriguem cada criatura a se reinventar – para sobreviver.
Se a girafa desenvolveu um longo pescoço, e o elefante, uma tromba, por conta das adaptações para viver num planeta dinâmico e diverso, o diferencial do homem é bem menos evidente que tentáculos de um polvo ou carapaças de tartarugas: o que se potencializou em nossa espécie foi o cérebro. Ao invés de haver homens com couro mais duro para sobreviver em temperaturas negativas ou outros com alguma natural proteção ao calor do deserto, há um mesmo aparato biológico em qualquer habitat, porque há em todos os humanos um cérebro que percebe o ambiente e pode inventar ferramentas para lidar com ele.
O poeta Fernando Pessoa escreveu num texto célebre: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. Ah, esses poetas, sempre dando saltos para além da compreensão mais óbvia! O criar a que se refere Pessoa não se trata somente de feitos necessários ao existir com as eventuais vicissitudes. É um criar a si mesmo que exalte não a individualidade, mas a espécie inteira. É fazer algo grandioso da própria vida. Ele acrescenta, sobre a vida: “Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha”.
E alguém duvida que o poeta português tenha atingido seu propósito? Pessoa segue iluminando, como a mim, agora, na criação dessa crônica sobre o criar. Tornou-se um patrimônio da cultura universal. Ao explorar as nuances múltiplas de si mesmo e de traduzi-las em distintas linguagens e abordagens, abriu veredas para que outros também possam refletir sobre as próprias inquietações e indagações físicas ou metafísicas.
Iluminar é também ajudar os outros a criarem a si mesmos. Afinal, a luz foi a primeira das criações do mundo, conforme tantos mitos de origem. Uma lâmpada costuma indicar graficamente o surgimento de uma nova ideia na mente. Também simboliza o criar a nossa luz maior, o Sol. Na astrologia, Leão, signo regido pelo Sol, representa a potência criadora humana. “Gente é pra brilhar”, já cantou um certo leonino que dispensa apresentações, emendando: “Gente, espelho de estrelas, reflexo do esplendor”.
Mas, como são tantas as estrelas, tantas também são as maneiras de criar e as próprias criações. São os fazeres e as formas do que chamamos de artes, são os trabalhadores com seus ofícios, mas também é o pai com seu filho, é o amar e o amor que geram universos. E é a generosidade que cada criador imprime ao ato de criar, para que sua cria vá muito além e atinja os outros, acendendo outras luzes.
E então o cronista encerra a crônica sobre a criação humana lançando a pergunta: o que de bom viemos fazer neste mundo? E cante, Caetano: “Gente é muito bom, gente deve ser o bom”.