No começo de dezembro de 1902, há 120 anos, portanto, Euclides da Cunha lançava o livro Os Sertões. Apesar das molduras teóricas comuns à época do autor, de cunho racista e determinista, Os Sertões não perdeu sua importância como documento ímpar para o entendimento da diversidade brasileira e dos problemas que insistem em se repetir. Por exemplo, o redivivo messianismo religioso e uma reincidente visão de superioridade dos brasileiros sulistas sobre os nortistas. Como o céu de Sagitário do aparecimento da obra volta a nos envolver, penso no sagitariano tema da moldura de visão e de como ela muda com o tempo, felizmente.
A também sagitariana imagem do homem a cavalo serve de mote para o autor descrever os modos e o caráter do sertanejo a partir do que considera um oposto: o gaúcho do pampa sulino. Em meio à aridez espinhosa da caatinga, o mestiço sertanejo é mostrado como “desgracioso, desengonçado, torto”, com “a fealdade típica dos fracos”. Já o gaúcho, afeito às planuras dos campos do sul, “adaptado a uma natureza carinhosa que o encanta”, teria uma “feição mais cavalheirosa e atraente”. Sim, essa comparação é claramente racista e insere o homem como produto do meio, conforme teorias já ultrapassadas à época da escrita do livro.
Para Cunha, o combate sem trégua contra as adversidades naturais fez do vaqueiro “um condenado à vida”. “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, diz ele em frase famosa. A implacável dureza da paisagem catingueira terminaria por moldar no homem que ali vive um impulso de absoluta resistência. Diferentemente do peleador gaúcho, teatralmente heroico, o sertanejo seria mais tenaz, mais perigoso, mais forte e mais duro.
No mesmo capítulo do livro, ao examinar as condições da desassistida vida sertaneja, Cunha diz do vaqueiro: “O seu primeiro amparo é a fé religiosa”. E surge aí a base do que vai justificar a construção do Arraial de Canudos no sertão baiano, que chegou a reunir 25 mil fiéis sob a liderança messiânica do beato Antônio Conselheiro. Canudos incomodou coronéis latifundiários e a Igreja, que exigiram providências da recente República. Monarquista que pregava um governo religioso, Conselheiro logo foi tido como inimigo do Estado. E entre 1896 e 1897, quatro campanhas sucessivas do Exército foram enviadas para dizimar o arraial. Quatro!, pois a República desconhecia a resistente garra sertaneja.
Os Sertões resultou da visita de Euclides da Cunha, como jornalista, ao local do embate entre militares e o povo, entre canhões e facões. A obra já nasceu clássica, fosse por sua estrutura, a conjugar ensaio, jornalismo e literatura, ou por sua temática, reveladora de um Brasil então desconhecido. Mas o mais tocante é a mudança do olhar do autor na parte final do livro. Cunha viajou com a versão do senso comum, da necessidade de a República conter um suposto poder paralelo nos sertões, mas lá deparou com uma gente pobre e abandonada que defendia, ao modo sertanejo, o que lhe era sagrado. O livro virou, então, a denúncia de um vergonhoso genocídio.
Ainda emociona a imagem dos últimos defensores de Canudos: “Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”. Também ainda choca a exumação do cadáver do Conselheiro para que sua cabeça fosse cortada e levada ao litoral, “onde deliravam multidões em festa”, como símbolo da vitória da dita civilização. Mas quem era mesmo o civilizado? E será que o Brasil já conhece o Brasil?