A manhã ensolarada fazia refletir um objeto de metálico brilho na calçada. Relutei se pegava ou não o que pareceu ser uma fina corrente prateada. Passei ao largo, mas, num impulso, voltei e apanhei o que identifiquei como uma pulseira, pelo tamanho. O pingente era uma corujinha cheia de detalhes, presa a um coração invertido, no vértice da pulseira. Olhei ao redor, tentando achar o provável dono do objeto, mas a quadra estava vazia. Pensei: isso dá crônica! E pus a corrente no bolso.
Agora, miro atentamente a pulseirinha. Quando estudamos artes simbólicas, como a astrologia, às vezes é assombrosa a forma como certos eventos trazem mensagens quase explícitas. Em busca dessas pistas, calculo o mapa celeste para a hora do achamento da pulseira. O Sol, conjunto a Vênus, em Libra, estava no topo do céu, perto do meio-dia. Do outro lado, a Lua se encaminhava para alinhar-se com o nebuloso Netuno, em Peixes. Lógica (Libra) e emoções (Peixes) em tenso diálogo, como a coruja e o coração. Pronto! Já tenho uma trilha para minha leitura.
A coruja é associada à deusa grega Palas Atena, a Minerva dos romanos. Regente da sabedoria e da justiça, Atena nasceu sem mãe, de dentro da cabeça de Zeus, o deus soberano. Tornou-se uma das divindades mais queridas da velha Grécia e a preferida de Zeus. Era guerreira, mas, inteligente e estrategista, preferia os combates sem violência, em que pudesse usar sua fria racionalidade. Num célebre julgamento que presidiu, deu o voto decisivo ante um empate no júri – de onde veio a expressão “voto de Minerva”. Por seus feitos, Atena – a deusa de olhos de coruja – é relacionada ao signo de Libra. Sua coruja costuma representar o conhecimento filosófico.
Já o coração dispensa elucidações por ser um dos símbolos mais conhecidos na cultura de massa. É o amor, sem o qual nada seremos. É o amor, que mexe com nossa cabeça e nos deixa assim. É a dimensão dos afetos, por extensão. Mas esse coração está invertido na pulseira, em relação à pendente coruja. São objetos em tensão, como no mapa do céu a racionalidade libriana confrontava as emoções piscianas. Penso no Brasil de agora e no desafio dos mais sensatos de pautar-se pela razão em meio a delírios e distorções de fundo emocional. Ah, Brasil, esse país cordial que andou tirando a filosofia dos currículos enquanto via o multiplicar das seitas religiosas...
Desde 1936, o historiador Sergio Buarque de Holanda é citado por sua interpretação do caráter brasileiro a partir do que chamou de “homem cordial”. Há muita confusão sobre esse conceito, como se cordialidade fosse apenas simpatia, intimidade e abertura aos outros. Mas a etimologia da palavra a conecta com o coração. No dicionário, cordial é o “que age movido mais pelos sentimentos do que pela razão”. E, sabemos, nem só por bons sentimentos bate um coração. Assim, melhor seria ver o brasileiro cordial como um ser passional. E o coração invertido na pulseira talvez ilustre a intensidade do ódio que agora desafia a coruja de nossa frágil razão.
Como num tribunal, estamos polarizados entre violentas reações instintivas, provenientes de corações inflamados, e tentativas de pensar friamente, a partir de fatos e dados concretos. Com seus olhos que enxergam melhor na escuridão da noite, a coruja de Minerva nos pede prudência. Tomara a deusa nos ilumine no decisivo voto final: o voto da pulsão de vida e não de morte. O voto pela ciência e pela educação, com filosofia nas escolas e reafirmação do Estado laico.