Últimos dias do inverno. Antes da aguardada primavera, o rigor de Virgem passa em revista o sucedido, num inventário do cotidiano. Virgem bem sabe: de nada adianta ansiar por um novo tempo sem uma avaliação crítica do vivido. E no turbilhão de fatos que tornam os noticiários tão confusos quanto absurdos, uma certa notícia me tocou particularmente: roubaram o emblemático par de óculos escuros do cantor e compositor Itamar Assumpção (1949-2003). Ok, há coisas maiores a me preocupar nessa decisiva quadra histórica, mas a vibração do signo dos detalhes me desafia a dar mais atenção ao caso. Até porque Itamar era um virginiano, como o Brasil.
O objeto estiloso, marca da irreverência criativa do artista desde o visual, integrava o acervo do Mu.Ita, museu virtual a ele dedicado, e tinha sido emprestado à mostra Afro Brasileiro Puro, em sua homenagem, no Centro Cultural São Paulo. A exposição na capital paulista foi encerrada para as devidas investigações. Não, não era apenas um par de óculos com quatro linhas horizontais se prolongando de cada lente na armação, mas um artigo de precioso valor simbólico. Tanto que Itamar foi retratado com esses óculos na estátua inaugurada ano passado no bairro paulistano da Penha, onde morava. Sim, aqueles óculos podem ser vistos como o próprio olhar desse artista genial.
E que olhar era esse? Ora, o de um negro brasileiro que se fez ferramenta de afirmação da liberdade de ser, fosse pelo viés criativo experimental ou pela insubmissão ao papel social que a própria cultura lhe destinava. Itamar chegou a ser preso por cinco dias na década de 1970. O “crime”: ser negro – “isca de polícia” – e estar carregando na rua um gravador portátil. Isca de Polícia virou o nome da banda que o acompanhou em muitos trabalhos. Seu som até hoje é difícil de ser rotulado, numa mescla peculiar de ritmos. Sua poética refinada transitava entre o lirismo e a ironia, em letras que exploravam a musicalidade de cada sílaba. Ah, e aquele timbre grave aveludado, aquela dicção a serviço do ritmo! Inclassificável e absolutamente irresistível.
Itamar Assumpção é cria de um Brasil que embora se reconheça caudal de múltiplas influências insiste em inventar sua própria identidade numa trilha única de misturas. Consciente disso, Itamar jamais se dobrou aos caminhos pasteurizados da indústria musical, preferindo a margem e pagando o preço da própria independência. Por sua aguda inteligência, por sua estética peculiar, por seu orgulho de ser o que queria ser, ainda soa como o melhor futuro do proclamado país do futuro. Para usar um neologismo dele, Itamar era um “pretobrás”. E dizia numa canção: “Pretobrás é o gigante negão / Queiram ou não queiram”. Seus óculos inconfundíveis eram imagem disso.
E por isso o roubo dos tais óculos não pode ser um mero detalhe. Por extensão de significado, é um projeto de país original e humano que desaparece. Sob o caótico e já longo clima de dissoluções da oposição de Netuno, em Peixes, ao Sol do Brasil, em Virgem, não podemos
afundar no vale-tudo e na vulgaridade. “Baixaria na cultura tanto bate até que fura”, já alertava Itamar em outra canção. Mais pudor, por favor! Reage, ó Brasil, pelo resgate de tua alma profunda e por um olhar inclusivo, criativo e respeitoso ao teu futuro. Aprende com teu filho virginiano Itamar Assumpção, vulgo Nego Dito: “Nasci moleque saci / Daí que eu nunca me entregue”.
E que chegue em paz a primavera, com o signo de Libra, na próxima quinta, às 22h04min