
O assunto é novela de novo, porque o motivo é forte. No próximo dia 25, devemos comemorar o centenário de Janete Clair (1925-1983). Que pipoquem aplausos de toda parte a essa ainda incomparável autora de folhetins eletrônicos que tocaram fundo a alma brasileira. Eu mesmo fico agora a me perguntar como teriam sido minhas noites de adolescência e primeira juventude sem novelas como Pecado Capital (1975), Pai Herói (1977) e O Astro (1979). O que seria de mim sem Janete Clair?
Certamente eu não teria assunto para tantos papos entre parentes e amigos no dia seguinte. No efeito das catarses artísticas, não experimentaria uma gama de emoções por conta de personagens em situações extremas. Não seria conduzido a reflexões acerca da realidade pelo viés hipnótico da ficção. E muito menos teria tido a educação sentimental que me faz pertencer, para o bem e para o mal, a esse país de homens cordiais com tanto afeto e tão frágil razão. Pois é, quem sabe eu seria hoje menos brasileiro se não tivesse havido Janete Clair.
Deve ter sido coisa do destino Janete e a TV Globo nascerem ambas sob o signo de Touro, aniversariantes com apenas um dia de diferença. Janete reinou soberana como novelista na década de 1970, a mesma em que a emissora carioca se firmou como hegemônica no Brasil. Foi quando a então novela das oito da Globo se tornou o programa mais assistido dentre todos de todas as emissoras de televisão. E podemos conferir: de Irmãos Coragem, em 1970, a Sétimo Sentido, em 1982, Janete Clair só não estreou alguma novela em 1978, porque ali a vez foi do seu protegido Gilberto Braga arrasar com Dancin’ Days. Sim, ela mereceu ser chamada de Nossa Senhora das Oito.
A mineira Janete Emmer era filha de um comerciante libanês e de uma costureira de origem portuguesa e italiana. Quem sabe tenha sido essa mistura étnica com tempero mineiro a matriz de seu dom de fabular sem perder o fio do real. Tornou-se engenhosa tecelã de tramas, primeiro no rádio, depois na tevê. Foi dela a proeza de atrair os homens para as telenovelas, já no faroeste caboclo Irmãos Coragem. Logo depois, sua Selva de Pedra bateu inacreditáveis 100 pontos de audiência. E com O Astro, fez o Brasil parar na revelação de quem matou Salomão Hayala.
Janete já chegara à Globo em 1967 com uma missão quase impossível: salvar do desastre completo a novela Anastácia, de enredo confuso, cenários caros e personagens em excesso. A certeira solução dela: criou um terremoto do qual só se salvaram quatro personagens, e inventou outra história. Fez História, com maiúscula. Casada com o também autor de novelas Dias Gomes, Janete voltou a salvar a dramaturgia da Globo em 1975, quando Roque Santeiro, do marido, foi vetada pela censura na noite de estreia. No lugar, foi reprisada uma versão compacta de Selva de Pedra, enquanto ela criava a toque de caixa uma nova novela para os atores já escalados para a trama vetada. Resultado: Pecado Capital, um estrondoso sucesso.
Amada pelo povo, Janete Clair era desprezada por certa ala militante da crítica, que via suas novelas como alienantes, se comparadas às tramas mais políticas de Dias Gomes. Baita injustiça. Ela mesma teve muitos problemas com a censura militar, que desfigurou novelas suas, como Fogo Sobre Terra (1974). Nascida com a Lua em Gêmeos, a mesma Lua do Brasil, Janete falava direto às massas. Dizia: “Escrevo sobre aquilo que conheço: a classe média. E tenho o cuidado de fazê-lo ao gosto bem popular, não escondendo os problemas, mas tratando-os com mão leve”.
Aos cem anos, Janete Clair é imortal na história da televisão brasileira e na memória afetiva do povo. Ela morreu aos 58, em 1983, enquanto escrevia a novela Eu Prometo, a história de um político às voltas com conflitos familiares e amorosos. Só fico aqui fabulando como Janete resolveria essa novela ruim da atual política nacional...