Feito o bardo paraibano, espalho coisas sobre um chão de giz. Volto a elas um olhar miúdo virginiano, como fosse catar feijão e precisasse estar atento à separação do bom e do nocivo. São coisas do país em que nasci e onde vivo – e onde ainda sonho, mesmo que certas partes nefastas suas tenham atingido níveis fatais de toxidez. Mas, por se tratar de um país que se fez livre sob o signo de Virgem, é que urge a limpeza que aqui proponho. O aniversariante está a completar 200 anos! Tal faxina, ainda que imaginada, deve fazer jus a essa efeméride.
Diante do enigmático chão de giz, vejo maravilhas e horrores. Em nome da necessária celebração, contudo, devo louvar apenas o que bem mereça. Chega de dar palco ao que nega a vida. Por isso, antes de tudo, separo um coração vibrante e vivo de outro coração emprestado, velho e morto. Aqui só deve pulsar o fraterno coração da gente brasileira, que cria futuros e inventa caminhos. É um coração saudável, pois não vive sem amor. É um coração que espelha milhões de outros, quase sempre anônimos, mas que se fazem únicos para quem recebe seu afeto. O coração vivo do Brasil é o elástico coração de José, de Maria e de João, de tanta gente humilde e preciosa no ouro do humano – a compaixão.
E espio os milhões de corpos do país. Observo as peles de tantos tons, os olhares de diferentes brilhos, os sotaques tão diversos, os mil caminhos dos desejos. Olho as fainas cotidianas entre o calejar das mãos e o pensar; as tantas artes e ofícios. E na imaginação dessa faxina histórica (utópica, sim, por que não?), sonho um arranjo pelo qual doravante o trabalho – essa dádiva virginiana – seja a ferramenta de expressão peculiar de cada ser, sem as atávicas cicatrizes da servidão étnica ou do machismo. Que as diferenças dos corpos sejam testemunhos da diversidade da natureza em nós, e não critérios de hierarquias.
Agora meu olhar se detém sobre as tantas nuances da fé brasileira. Como festejar a vida sem a renovação da fé, a abrir veredas no porvir? E como reconhecer o Brasil sem sua mistura de culturas e crenças, na vibração sempre múltipla e sincrética da conjunção entre a Lua e Júpiter em Gêmeos? Ah, somente aqui faz todo sentido a rima apontada pelo poeta Jorge Mautner de “tambores do Candomblé” com “Jesus de Nazaré”. Portanto, para essa festa de 200 anos, que se enfeitem portas e janelas com fitas coloridas. Que se lavem as casas e os corpos com ervas cheirosas e curativas. Que se irmanem com todo respeito os sentidos da bênção e do axé, do aleluia e do saravá. E que as fumaças dos incensos tenham o puro – e divino – aroma da tolerância.
E eis que, finda a faxina física e espiritual, cabe pensar na festa. Que se preparem os salões para as artes e delícias dessa nação sem igual! Mesas gigantes forradas com chita devem oferecer a feijoada de tia Dadá e o assado de costela de seu Zezinho, o caruru de dona Dalva e o arrumadinho da Bebel, e mais e mais. E tem que ter cachaça mineira e vinho gaúcho, chimarrão e tererê, suco de umbu e batida de cajá. E as sobremesas? Goiaba cascão com queijo colonial, sagu e cocada, ambrosia e papo de anjo...
E a música, meu Deus! Tem que ter samba e concerto, rock e forró, funk e gospel, guitarrada e sertanejo, canções de ninar e canções de despertar. Tudo isso para todo mundo – todos mesmo. Tudo isso sem hora para acabar, nesse país que se purifica para renascer.
Corações vivos e sem ódio, ao trabalho! Ah, é só um sonho? Tudo bem, já é um belo começo.