Manhã outonal de domingo. Nas ruas quietas do bairro a essas horas, por onde costumo caminhar em busca de ar e luz, leio numa placa à frente de uma casa: conserto brinquedos. Que serviço mais curioso! Minha mente logo se apressa em tecer considerações sobre esse trabalho deveras incomum. Penso em senso de oportunidade, num mundo em que o descarte é regra. Penso nos jeitos originais de cada pessoa se virar com seu suor para garantir o pão. Mas também penso que esse fazer tem um objetivo que transcende a habilidade técnica de consertar um brinquedo avariado: o de devolver a uma criança a alegria já vinculada ao objeto. E sigo pela rua deserta, sob a calidez solar taurina, louvando o afeto que projetamos no que fazemos.
A porção taurina em todos nós é a energia que define o que valorizamos, resultando em segurança e satisfação. Touro é regido por Vênus, o astro que simboliza nossa aptidão para o conforto e o prazer. Em tese, o que nos faz bem e flui naturalmente, nos deixando vivos e ativos, deveria ser o combustível de nossas atividades produtivas. Como Touro também rege o dinheiro, seria óbvio pensar que nossa fonte de renda deveria ser nossos talentos únicos e espontâneos. Ah, que glória fazer somente o que gostamos! Assim, o fruto do próprio labor viria impregnado de nosso prazer de ser e de viver. O problema é que nem sempre esse impulso subjetivo ecoa em sintonia com as exigências externas. Sempre há um mercado, com o poder de endossar ou confrontar nossos valores individuais. E quase sempre estaremos em negociações com os anseios de nossos dons.
Isso vem desde a Revolução Industrial, no século 18, quando a produção em série para um público gigantesco e anônimo descartou o velho modelo artesanal e mais personalizado. Feito o doido Chaplin na linha de montagem, fomos engolidos pelo universo-máquina. O mercado, qual uma divindade, passou a ditar o que sejam habilidades úteis. Muitos têm a sorte de verem seus dons em alta na bolsa de valores, enquanto a outros tantos restam portas fechadas e caminhos tortuosos. “Arte não paga as contas”. “Ser antropólogo não dá dinheiro”. “Realização pessoal não enche barriga”. Entre crenças partilhadas, o pujante Touro em nós vai se domesticando, virando boi, aceitando a canga que todo pescoço deve carregar. Sob as leis da sobrevivência material, o princípio do prazer de Vênus se transfere para as enganosas maravilhas do ato de consumir, consumir e consumir, como quer o onipresente mercado.
“Eta vida besta, meu Deus”, diria o poeta escorpiano Drummond sobre nossa condição bovina. Sair dessa situação exige muita coragem e atenção aos sinais de crise do sistema produtivo – como a que agora se anuncia no trânsito do inovador Urano por Touro. Seja pela mudança de hábitos na pandemia ou por um inadiável cuidado com o nosso planeta, urge repensar nossos consumos. Não podemos mais ficar reféns de necessidades criadas pelo próprio mercado em
sua sanha gananciosa. E se o consumo for inevitável, por que não valorizar produções cujo processo respeite o ambiente, a pessoa, o afeto cuidadoso? Chega da regra “quebrou, compra outro”. Para além dos selos de qualidade, que possamos criar também selos de humanidade e de presença de alma no ato de fazer.
Planeta da utopia, Urano nos convoca agora a semear outro futuro. Buscaremos saídas alternativas, apostando em produções humanizadas, ou nos renderemos aos algoritmos que nos enredam na bovina obediência? A vida não é brinquedo, mas sempre pode ser consertada.