Já escrevi sobre o Ailton Krenak. Não porque ele seja indígena, nem porque seja o primeiro indígena da Academia Brasileira de Letras. Importa o que ele pensa. As provocações dele não se limitam a críticas sobre a condução do tema meio ambiente. É natural que alguém tão ligado à natureza como ele, também por causa de sua raiz ancestral, revele nossas falhas como sociedade ainda mais expostas a cada novo evento climático — extremo ou não.
Se bateu pra ti, nas entrelinhas do que contei até aqui, que o Krenak é mais um utópico, um sonhador idealista, segue o fio. Utópico mesmo (e não há nenhum problema com isso) é esse trecho a seguir, que ouvi num bate-papo entre o Krenak e o fotojornalista japonês Hiromi Nagakura, no quarto episódio da série Conversa na Rede (assiste aqui).
Nesse trecho eles recordam do tempo de convivência na Amazônia, quando transitaram por diferentes aldeias, de diferentes etnias, entre elas os Ashaninka, cujo território vai da região do Alto Juruá, no Acre, até as cordilheiras andinas, no Peru. No vídeo, Nagakura lembrou que as moradias dos Ashaninka não têm paredes. A partir daí, Krenak diz o seguinte:
“Esse cuidado com o limite do próprio corpo no espaço, que consegue produzir uma habitação sem parede é uma declaração que funda um modo de estar no mundo. Se você vive numa caixa de concreto você está também fazendo uma declaração do seu modo de estar no mundo, e do que você quer esconder no mundo”.
E fica ainda mais utópico (só pra voltar a usar a palavra-chave):
“Uma habitação que não precisa de divisão, nem parede, nem fronteiras, ela é aberta a uma espécie de fruição da vida, onde tudo pode circular, onde tudo pode acontecer e se mover, porque não existe interdito. Não tem nada pra esconder”.
Krenak diz isso tudo, deitado em uma rede, observado com atenção pelo amigo japonês. E prossegue:
“A civilização ocidental, os brancos, fazem caixas de vários tamanhos e dentro dessas caixas têm outras caixas menores. Eles têm cofres onde escondem joias e documentos — tesouros materiais. Eles põem o coração deles dentro daquelas coisas. E é por isso que eles precisam esconder tudo”.
Dito isso por alguém que devota seu coração à mãe terra, a potência é maior. Pelo menos pra mim. Ao fim desse trecho, Krenak explica ainda porque fazemos o que fazemos, em contraposição ao modo de vida dos Ashaninka:
“É como se fosse uma insegurança, um desespero que faz com eles escondam tudo. A gente não precisa esconder nada. Essas habitações sem parede são uma disposição amorosa com a vida”.
— Mugnol, como faz pra morar numa casa sem paredes no inverno da Serra?
— Pois é, meu caro, o pragmatismo, além de estrangular utopias, é hábil em matar metáforas.