O trauma é a barragem que rompe,
o tiro no escuro,
a agonia da espera,
a casa derrubada,
a avalanche de terra,
é o câncer que resiste,
a vacina que não chega,
a fila que não anda,
a inútil batalha contra a natureza,
o trauma é a avareza,
a frieza,
a naturalidade da morte,
o silêncio intermitente,
a fissura n’alma,
é o ser humano coisificado,
a mulher objeto,
a câmara de gás,
são todas as formas de genocídios,
o rio envenenado,
o velório vazio,
a mancha de sangue na mortalha,
é o grito de socorro interrompido,
a voz embargada de quem fica,
o trauma é o buraco,
a rachadura,
a lacuna,
a falta que ama,
é o amor que não salva,
o desespero que alucina,
o soco na parede,
o trauma é a fome,
a sede,
o sertão que vira mar,
o mar que vira sertão,
é nunca rever,
jamais apagar,
o olhar embaçado,
a dor infinita.
O trauma é nunca dar conta de narrar o trauma. Não existe um jeito de contar. Não faltam palavras.
Tem muita gente falando sobre as consequências da tragédia e os efeitos colaterais desse desastre que está mudando o mapa do Rio Grande do Sul.
Foram escritos centenas, milhares de livros sobre o holocausto, sobre os genocídios étnicos que ainda matam, sobretudo minorias, mundo afora.
Psicólogos, psicanalistas e psiquiatras têm bagagem pra nos ensinar a lidar com o imponderável, o impalpável, com os mais diversos sentimentos bagunçados e ricocheteando dentro da gente.
Mas é impossível dar conta de narrar o trauma. É que o testemunho de quem sobrevive é só uma parte da história.
Nem mesmo a polifonia de tantos flagelados vai dar conta de explicar o trauma que deságua em nós.
Vai faltar sempre a palavra de quem mais sofreu.
Vai ficar pra sempre a lacuna, a fala interrompida.
O trauma é a cicatriz do silêncio de quem morre.