Nem tudo é explicável. Na última terça-feira (16), o meu parceiro de crônicas, o Carpinejar, publicou em ZH um texto que me desconcertou. E por duas vias. Primeiro, porque ele tem o privilégio de conviver com os pais que já atravessaram a marca dos 80 anos. E, segundo, porque eu tinha escrito essa crônica que vocês leem, ainda na segunda-feira (15), falando justamente sobre os 80 anos do meu tio Nestor. Mais do que coincidência, uma baita sintonia, né?
Então, com eu ia dizendo, é um baita privilégio conviver com os pais por longos anos. Meu pai, infelizmente, morreu cedo demais. Não atravessou a barreira dos 60. Minha mãe, felizmente, dá sinais de que vai honrar a longevidade herdada da genética dos Chies e deve bater o recorde que, até o momento, é da minha bisavó Tereza. A bisa chegou pertinho de completar 101 anos.
O tio Nestor, da outra linhagem, a dos Mugnol, parece ter 60 e não 80. Na festa de aniversário, no último sábado, todo mundo compartilhava da mesma impressão. Nascido em 1944, em um ano bissexto, o tio ultrapassou 29 mil dias vividos. Nem todos alegres, como na festa com música, dança e mesa farta, em uma casa de eventos em Passo Fundo. Alguns foram pesados, difíceis, carregados de tristeza e desesperança. Mas, de alguma forma, o tio encarou de frente cada dia, encontrando mais de 29 mil motivos pra seguir em frente.
Nesse tempo, acompanhou ainda 320 trocas de estação, considerando outono, inverno, primavera e verão — nessa ordem, sob o signo de Áries, a ponta de lança do zodíaco. Impossível contabilizar quantos quilômetros o tio percorreu mundo afora. Além das frequentes visitas à casa do vô Júlio e da vó Pierina, de Vacaria pra Caxias, onde o tio Nestor, a tia Iraci e meus primos moravam, por ser representante comercial, a estrada acabava por ser sua segunda casa.
O tio também atravessou mares e oceanos. Vi uma foto dele com a tia Iraci em uma gôndola, navegando pelos canais de Veneza. O melhor da vida é construir memórias. Mesmo as travessias amarguradas, ásperas e angustiantes. Enterrei meu pai. Foi duro e triste — ainda é. Contudo, o tio Nestor enfrentou o enterro dos pais e de três dos sete irmãos, o tio Antoninho, o meu pai, Claudio, e a tia Clarice. Apesar das mortes pelo caminho, avançando um dia por vez, o tio Nestor nos ensina que é preciso seguir em frente.
Vê-lo tocar viola, ao lado do professor de música, tentando dominar esse instrumento que traduz tanto desse Brasil que a gente ainda desconhece, foi o momento mais bonito pra mim. Mais ainda do que o registro fotográfico. É que a música tem o poder de revelar tanto sobre a gente. Coisas que, por vezes, guardamos trancafiadas no peito. A música desata nós, restabelece conexões, entrelaça passado e presente, abraça e acaricia.
Tio, te desafio a formar um quinteto pra tocar Piazzolla. A pianista tu tens aí, pertinho de ti, a Fabíola, exímia instrumentista. Enquanto isso, sugiro que exercites tua técnica com o repertório dos Irmãos Bertussi. A música Ô, de Casa tem potencial pra ser a trilha sonora com poder pra despertar um turbilhão de memórias do tempo em que a gente convivia na casa do vô e da vó. Pelo menos sempre que eu ouço essa música é pra lá que eu sou transportado. E dá uma saudade imensa... Enfim, isso é assunto pra outro dia.
Feliz aniversário, tio. Pronto pra dobrar a meta?