Pra ler ouvindo Dee, do Randy Rhoads
Conheci um cara que aprendeu a dominar as dissonâncias. Dia após dia, horas de guitarra em punho, bolhas nos dedos, ele enfrentava a rigidez do infalível metrônomo determinando o tempo preciso pra tocar a sequência de notas perfeitas. Não importava apenas ser veloz, cada nota precisava soar límpida, com a palhetada assertiva deixando vibrar o campo harmônico no tom certo, o tempo todo, a música toda.
Nada podia interferir nessa rotina de horas exaustivas. A música como religião, o heavy metal (e mais tarde o blues) como doutrina. No panteão criado por ele, deuses distintos como Ritchie Blackmore, Yngwie Malmsteen, Marty Friedman, Jason Becker, Steve Vai, Paul Gilbert e John Petrucci, eram venerados e seguidos, nota por nota, fraseado por fraseado, até a mais completa absorção de suas sonoridades.
Não conheci ainda um cara tão obcecado pela música quanto ele. Pelo menos não convivi tão de perto com alguém tão intrinsecamente ligado à música quanto esse cara. Com o tempo, o neoclassicismo foi perdendo o vigor, e então ele se entregou de corpo e alma ao blues. Mudou o jeito de tocar, mudou o foco, mas nunca a pegada, vigorosa, herança dos tempos de guri headbanger.
Aliás, no último sábado (dia 6), quando eu entrei na cervejaria Lands Craft Beer, no Tributo ao Cristian Rigon, me senti arrebatado em corpo e espírito, como se tivesse sido transportado à garagem da casa dos pais do Cris. Pois então, me vi ali, do lado dele, só nós dois, tentando colocar em prática as músicas que tínhamos estudado a semana toda, porque ele dizia que a agente precisava estar em sintonia pra quando tivéssemos de fato uma banda. E demorou um tempo pra acharmos um batera e alguém pra cantar, porque o Cris era um cara tri exigente.
O Cris morreu em fevereiro do ano passado. Mas ainda é difícil lidar com isso. Ele continua muito presente na minha vida — porque a religião da música nos uniu. Falamos muito sobre a vida naqueles tenros anos. Sonhamos com os discos a serem gravados, as turnês pela Europa. Compartilhamos também de dores e desesperanças em comum. E tudo tinha sempre uma trilha sonora. Machine Head, do Deep Purple, e Piece of Mind, do Iron Maiden, eram nossos opostos complementares.
Silenciosamente, o Cris enfrentou suas dores (e fantasmas) naquelas últimas horas em que esteve deitado no leito de um hospital. E, talvez, mesmo sabendo que não tava tudo bem, ele disse que ia ficar tudo bem. O Cris, o cara que eu conheci, não escondia suas fragilidades, tinha convicção da finitude e sempre dizia pra gente curtir cada momento. E mais, tínhamos de estar afinados e tocando pra c*, sempre, porque, se pintasse um show, íamos arrebentar.
Agora vou ali botar pra tocar Burn, uma das músicas que o Caio tocou no teu tributo. Aliás, tu ficarias orgulhoso de ver o teu filho encarando essa. Saudades meu velho.