Dia desses escrevi uma reportagem sobre os indígenas da aldeia xokleng, que estão em processo de retomada do seu território ancestral, em São Francisco de Paula. Até aí, tudo bem. Só que recebi alguns e-mails provocativos (no bom sentido). Escreveram sugerindo que eu falasse mais sobre um aspecto em particular e que sutilmente descrevi logo no início da reportagem. Repito aqui, caso alguém não tenha lido:
“Nós somos raízes”. A afirmação é da cacica Cullung Vei-Tcha Teié, líder da Retomada Konglui, na Floresta Nacional (Flona) de São Francisco de Paula, território ancestral da etnia xokleng. A frase dita por ela não é uma figura de linguagem. Pode até ser compreendida como uma metáfora. Contudo, para a cacica o significado é literal. É que a visão de mundo dos indígenas extrapola as fronteiras do nosso entendimento, visto que está intrinsecamente ligada ao mundo espiritual. Ou seja, não há separação entre o que se vê e o que é invisível ao nosso olhar.
Pois, então, os indígenas não falam por figuras de linguagem. Quando eles citam a relação com a natureza, não são como admiradores. Ou como pessoas que a respeitam. Para eles, “ser raiz” significa, de fato, ter nascido a partir da seiva que brota dessas árvores. Nós inventamos a metáfora. Nós, os não indígenas, os conquistadores, que apressadamente invadimos seus territórios, subjugando-os. Nos esforçamos para criar imagens poéticas, cenas que possam nos levar a ver outras dimensões da realidade. Os indígenas, por sua vez, já nascem imersos no que nós chamamos de “imagens poéticas”. Portanto, não lhes falta linguagem. A nós, sim, falta linguagem para tentar decifrá-los.
Apesar de sucessivas tentativas de aniquilar as mais diversas etnias, contudo, não foi possível destruir a sua história, tampouco sua linguagem. Seus corpos foram afligidos, foram sufocados territorialmente, mas não foi possível apagar o seu percurso no tempo e no espaço. Os ancestrais seguem se revelando por meio de sonhos, preconizando o futuro, ensinando seus irmãos a falar e também a respeitar os espíritos da floresta. Os antepassados deles dialogam por uma linguagem que a nós (não-indígenas) é praticamente impossível de ser percebida. A menos que sejamos conduzidos por algum indígena. E mais, que sejamos merecedores de ouvir a voz dos ancestrais.
De modo geral, somos surdos ao que dizem os espíritos da floresta, os ancestrais e até mesmo os indígenas que estão agora, nos territórios, reescrevendo a história de seus antepassados. A luta por território não é apenas a disputa por um pedaço de terra. É sobre o direito de viver a plenitude de sua visão de mundo. Ou do que se pode chamar de “cosmovisão indígena”. É mais do que supõe nossa filosofia, pois a nossa visão está embaralhada por figuras de linguagem, metáforas que nos arrancam do plano natural e nos levam a viver anestesiados pela poética. E, aqui, não no sentido de apenas escrever versos. Mas no sentido de distender a realidade por meio de artifícios poéticos.
E se fôssemos capazes de ver a poesia da vida por meio da realidade revelada pela filosofia indígena? Talvez enfim compreenderíamos o que a cacica Cullung quis dizer ao afirmar: “Nós somos raízes”. Afinal de contas, ela só está exercitando a linguagem que traduz a realidade transcendental onde vivem os indígenas.