Dia desses, na aula do professor e poeta Douglas Ceccagno, acabamos relendo o conto Trezentas Onças. Daí, imediatamente lembrei de um filme dirigido por André Costantin.
Blau Nunes, O Vaqueano poderia ser só uma tentativa de personificar essa mítica figura que ninguém sabe se existiu ou se foi só um espectro de Simões Lopes Neto. Só isso bastaria. No entanto, Costantin vai além. Aproxima dois universos. Aproxima as contradições daquele passado poético e lendário de Lopes Neto (ou seria Blau Nunes?) com o tempo atual, estabelecendo um diálogo com esse gaúcho, que mesmo à cavalo parece léguas distante do pampa.
Blau é retratado num descampado. Solito. Crava o pé na pedra, acomoda o cotovelo no joelho, a mão no queixo, e olha ao longe, procurando uma pista qualquer do sentido do gaúcho. Um ator interpreta Blau, que interpreta o pampa sob a luz de Simões Lopes Neto, que é revisto por Costantin na voz de Vitor Ramil. É inquieta e reveladora a construção dessas múltiplas vozes. Mais delirante ainda é o diálogo entre essas duas paisagens:
1) daquele pampa dos raios de sol atravessando as densas nuvens, de Blau;
2) da Pelotas (terra que parece perdida no tempo) chuvosa e serena, de Ramil.
A primeira é recriada por Costantin. É aquela densa imagem do pampa que não precisaria ser filmada, porque todos que, de alguma forma tiveram um mínimo contato com a cultura gaúcha, têm ela impregnada na retina. O horizonte largo, enquadrado entre o céu nebuloso e o prado verde. O gaúcho valente, guerreiro e truculento, ou o gaúcho apaixonado, acolhedor e honrado, resiste na memória de Blau. E passa a reencarnar na memória do espectador quando Costantin nos revela Blau nesse pampa anacrônico.
A segunda imagem nasce do olhar de Costantin pelo nosso tempo, seja da Pelotas (perdida no tempo) ou de Porto Alegre (mais veloz do que o próprio tempo). Entre as poças d’água na calçada, Ramil narra um certo desconforto, tenta reatar a lucidez perdida em alguma estância. Mas é mais poesia do que verborragia. É a imagem desse novo tempo, rápida, abrupta, câmera inquieta na mão, enquadramento relapso, passo ligeiro, chuva fina, sem fim.
Transitando entre esses dois cenários, do passado contemplativo, ao futuro vertiginoso, Costantin dá voz às histórias contadas por Blau Nunes (ou seriam documentadas por Lopes Neto?). São colagens de depoimentos de gaúchos de todas as querências pontuadas pelo texto do escritor. Histórias de amor e morte, sem a tresloucada passionalidade de Julio Reny, mas com a veracidade do sangue escorrendo da ponta da faca. Tudo é verdade e ficção ao mesmo instante poético. Mesmo aquele amor conquistado com bravura pode ser só um delírio de Blau.
Delírio ou não, Costantin não tem medo de revelar o truque que nos prende ao filme. Não é como chegar ao fim de uma jornada e perceber que não andamos um centímetro sequer. É mais denso e profundo. É dar-se conta da finitude do mito. Nem por isso, do seu completo esquecimento. No entanto, Blau segue, e seguirá eternamente, sendo velado à sombra de algum arranha-céu de alguma cidade desse rincão chamado Rio Grande. E nem mesmo a música de Ramil vai despertá-lo.