Dia desses tropecei numa crônica. É que a crônica não tem nada de genial, paranormal ou surreal. É só um recorte de um instante ou dois, de pessoas atravessando seu cotidiano, aparentemente banal e que, por um deslize de insanidade de quem observa, vira crônica. “O que não mata vira crônica”, já dizia o mestre Dudu Oltramari.
Então, eu estava sentado numa mesa da hamburgueria do roqueiro Jaime, quase no centro do salão. Uma mesa pra duas pessoas. No caso, pra mim e pra minha mochila que pesa duas toneladas, entre anotações de entrevistas de pautas passadas e uma centena de comprovantes de pagamentos diversos que, amassados, tendem a mofar até, quem sabe, o despertar da limpeza, que ocorre sazonalmente, a cada troca de estação.
Enfim, sentado ali, folheando o cardápio escolhi o padrão xis da casa, sem alface. Então, passei à segunda etapa. Enquanto aguardava o lanche, catei um livro na mochila. Aliás, ler é a melhor tarefa que executo na vida. Talvez a segunda, porque dormir é a primeira. Enfim, tentei mergulhar no livro Luta Corporal, do Ferreira Gullar, porém, o diálogo entre as três pessoas da mesa ao lado roubava a minha atenção:
— Por que o Clóvis não veio?
— Tu sabe que ele não gosta de xis, nem pizza.
— Ele vai comer o quê?
— Acredita que ele não vai comer o arroz com feijão que fiz pra ele?
— E vai comer o quê?
— Bucho. Ia tirar do congelador e esquentar.
— Se ele gosta...
— Coisa boa um bucho. Tá me dando fome.
Enquanto tagarelavam chegou o meu xis.
— E pra beber, Mugnol?
— Pepsi Twist.
— Com gelo e limão?
— Nem precisa, já vem limão nesse refri.
— Ah, é mesmo (risos).
Na primeira mordida ouvi a reclamatória dos meus vizinhos de mesa.
— Não acredito que o xis dele veio antes!
Naturalmente, fingi que não era comigo. E, apesar do tom de voz sussurrado, percebi, nitidamente, como se ouvisse sílaba por sílaba o lamento deles:
— Por que não pediram o xis antes de eu chegar?
— A gente pediu! Os nossos e o teu!
— Então por que tá demorando tanto?
Resolvi parar de comer. Deixei meu xis descansando (no caso, esfriando). Fingi ler poesia. Confesso que meu primeiro impulso foi sentir culpa. “Mas culpa de quê?”, pensei. Talvez de existir. Talvez eu, ali, sentado naquela mesa e comendo xis da casa sem alface, havia me tornado num algoz, no maior incômodo de toda a existência dessa família. Sei lá, vai saber.
Depois de analisar friamente a situação, decidi não almoçar até que o pedido deles viesse. O que demorou a eternidade de 2 minutos e 33 segundos. Não comi antes deles porque, com os olhares atravessados (e famintos) dos meus vizinhos de mesa, certamente embrulharia meu estômago.
Por fim, eles terminaram de almoçar antes de mim.