Eu queria escrever sobre Asas do Desejo. O belíssimo filme do Wim Wenders é destaque desta quinta-feira (dia 25) na programação do Cinema de Verão, na Tem Gente Teatrando. Em preto e branco, Wenders conduz o espectador pela imensidão da vida, através de um olhar poético, no limiar da morte iminente.
Eu queria escrever sobre os planos abertos que parecem romper com os limites da tela de exibição. Ou, ainda, escrever sobre a organicidade da montagem, que estabelece um diálogo sensível com os movimentos de câmera. Noutra camada, que vai além da ação em cena, Wenders deixa vazar o pensamento dos personagens, em permanente fluxo contínuo. Porque esse olhar da câmera é também um personagem contracenando com os demais personagens, dentro e fora da cena.
Numa delas, um senhor que viveu perto demais o horror da Segunda Guerra Mundial, divaga: “O que há de errado com a paz que sua inspiração não dura tempo suficiente para ter sua estória contada?”. Eu queria escrever como essa cena parece asfixiar o doce fragmento poético do início do filme, que diz: “Quando a criança era criança, não sabia que era uma criança. Tudo era cheio de vida, e a vida era única”.
Eu queria escrever dizendo que essa aparente confusão de sons, versos pungentes e vozes dissonantes, entre gritos e sussurros, que brotam tanto da música de Nick Cave, quanto dos pensamentos de seus personagens, que tudo isso misturado se entrelaça no roteiro de Wenders, revelando ternura, um tanto de futilidade, o eterno cabo de guerra entre a tediosa apatia e a raivosa bravura. E nem sempre se sabe em nome de quê.
Porque, no final das contas, é tudo sobre o amor e o desamor, a incapacidade de amar em confronto com o eterno pesadelo da queda em espiral, precipício abaixo, que alguns entendem ser a personificação da solidão. “A solidão”, diz uma das personagens vestindo um traje vermelho escarlate, “significa ser, por inteiro, um só”.
Eu queria escrever sobre as reviravoltas. Não dessas criadas pelos roteiristas de cinema. As reviravoltas da vida, mesmo. Num dia a criança não sabe que é criança. Noutro, o velho luta para manter vivas as memórias que ainda importam, com a daquele olhar que ainda emudece os lábios, arde o peito e sussurra: “Eu te amo”.
Eu queria escrever sobre a poesia da vida. Mas, no mesmo dia em que pensei sobre isso, ao passar ao lado de um contêiner de lixo orgânico, ouvi um estrondo. Pensei que fosse um animal. Ao chegar mais perto, fui surpreendido por um ser humano tentando sair lá de dentro. Ele escalava o contêiner como se travasse a maior batalha de sua vida. Fugi dali, como se eu fosse o rato. Pois é, Manuel. Teu poema, apensar de ter sido escrito em 1947, tristemente, ainda revela a mesma dura realidade:
“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”