"A reportagem de jornal sobre um acontecimento nunca terá tanto impacto como um filme. As catástrofes só acontecem com os outros, com gente que não conhecemos. Uma tela o faz conhecer imediatamente o assassino e a sua vítima, pela qual você vai tremer, pois aos seus olhos, ela se tornou alguém. Há milhares de acidentes de carro todo dia. Se o seu irmão é a vítima, isso começa a lhe interessar. Se o filme for bem feito, um herói de cinema deve se tornar seu irmão ou seu inimigo".
O cineasta Alfred Hitchcock (1889-1980) expôs esse ponto de vista em entrevista a François Truffaut (1932-1984). O fruto da conversa virou livro lançado em 1967 — a primeira edição brasileira, no entanto, foi editada somente em 1986.
Hitchcock não viveu a Era da Informação disseminada pelas redes, não presenciou o entorpecimento que é gerado pelo acúmulo exagerado de postagens alucinadas, tampouco resistiu a tempo de enxergar a manipulação do tempo e do espaço, nessa estranha sina que nos condiciona a uma vida metaverso, na contramão do sentido natural das coisas.
A intensidade e impacto dessas informações, geralmente visualizadas por meio de aparelhos que guardamos no bolso, nos condicionam a um estranho fluxo orgânico como se os dados corressem através da corrente sanguínea, por vezes, atuando como anestésicos que nos entorpecem.
Em parte, Hitchcock tem razão. Ainda mais nessa era de enxurrada de notícias, que ricocheteiam para todos os lados, com pouco — ou quase nada — de reflexão, ponderação, análise e sublimação. "Notícia é um fato de interesse púbico, e ponto", diz aquele catedrático. E quem disse que a notícia tem de ser fria, desprovida da urgência da vida que pulsa, dissociada das realidades que atravessam uma comunidade? E mais ainda, sem rosto, nem identidade?
Se for só o relato do fato em si, omitindo o contexto das situações ou aniquilando a complexidade da vida dos personagens, aí sim, Hitchcock tem razão. Se o jornalismo — que é (ou deveria ser) a descrição da vida como ela é — não cumprir com sua missão de trazer à luz da cena as aflições cotidianas, dialogando com a urgência da vida de cada um de nós, então Hitchcock estava correto ao afirmar: "A reportagem de jornal sobre um acontecimento nunca terá tanto impacto como um filme".
Agora, quando a jornalista Daniela Arbex revela os nomes, as histórias e descreve os sonhos dos que foram arrastados na tragédia de Brumadinho, ou quando John Hersey narra seis pontos de vista de sobreviventes, que reconstituem a tragédia de Hiroshima, ou ainda, quando Eliane Brum subverte a frieza da estatística e nos colocado sentados na sala de estar de Hustene Alves Pereira, para ouvir dele que "um homem precisa de futebol, religião e ideologia para não perder a sanidade", aí sim, é possível enxergar sintonia entre a força narrativa do cinema e a força narrativa do jornalismo, que, em síntese, nos aproxima do fato por meio dos personagens sem perder a realidade de vista.
Em suma, mais vale a ficção baseada na realidade, que é conduzida por um diretor de cinema engenhoso, que sabe fisgar o espectador e levá-lo a cabresto por entre a jornada do herói a perseguir o bandido, ou a reportagem escrita por um repórter que suja os pés em busca das histórias de vida que transcendem a realidade, construindo pontes que aproximam dissidentes e tecem tramas de verdade com nome e sobrenome?
Para Hitchcock: "Se você cria o seu filme corretamente, emocionalmente, o público japonês deve reagir nos mesmos momentos em que o público da Índia reagiria". No entanto, a vida como ela é amplifica a voz de Dorica, a mais velha parteira da floresta Amazônica: "É o tempo que faz o homem e não o homem que faz o tempo".