Em dias de sossego, coice. Em dias de sonho, pesadelo. Em dias de vertigem, muralha. Em dias de mansidão, terremoto. Em dias nublados, mar. Em dias de caramujo, flutuar. Em dias de trovão, silêncio. Em dias de luto, correnteza. Em dias amargos, sutileza. Em dias de poesia, fornalha. Anacrônico, tropeço e viro pó.
A licença poética do coxo é mancar a perna sã, a virtude do trapaceiro é ser humilde, a vaidade do ferido é vestir-se de candura, o pavor do inquieto é arrancar dentes, a felicidade do rogado é cavar covas, a dor do pássaro é pregar cântaros em sacadas.
É como paz com granadas, amor com facadas, panelas fissuradas, ossos esmigalhados, abraços pontiagudos, farinha mofada, vidros trincados e toda sorte de alucinados, ensandecidos e lunáticos sentados em tronos de autoridade, desfilando corrosivos em vez de alteridade.
Austeros, cheios de ternura revestida por uma couraça de raiva, quase como suportar uma jornada de trabalho em meio à crise de cólica menstrual. Ou ainda, como bronzear o corpo dormente, esquálido pela velhice, durante a mais rigorosa tempestade invernal. Atávicos, por adoção.
Empacotar a saudade ou trancafiar o amor? Jaula ou joia? Arrepio ou calafrio? Desleixo ou disléxico? Chá gelado ou espumante sem perlage? Com bigode ou pelos na orelha? Calvo ou servo da quermesse? Virulento ou curandeiro?
Não há paz sem guerra, da mesma forma que não há sossego sem uma temporada dentro da noite veloz permeada de aflição. É como o retratista, que é pungido de expectativas quanto ao resultado final da obra, porque ele precisa tornar belo o retratado. Porém, o poder do retrato é justamente expor o desconhecido do personagem, é traçar em tintas a intensidade da personalidade, despida de reboco.
E tudo isso porque buscar o equilíbrio é mais do que suportar um tapa na cara, mais do que suportar tempestades em alto mar, ou levantar depois do coice no rim. A vida, meu amor, é driblar o caos e, apesar das pernas tortas, fintar o zagueiro violento, deixando-o torto, entorpecido do veneno de sua canalhice e vê-lo cair como um tomate podre, espatifando sua demência diante da multidão.