A crônica pode ser só um texto, um breve relato de uma situação corriqueira, cotidiana. Pode abordar o presente pueril, bem como revisitar o passado e atribuir ao que foi um novo sentido para o que está por vir. Há, contudo, quem acredite no valor da crônica, essencialmente, como documento histórico e registro de uma época. Tudo isso faz sentido para mim. No entanto, a crônica se consolida como uma autêntica expressão do que penso sobre a vida quando consigo extrair um gesto através das palavras.
Porque, à beira-mar, o navegar é sempre tranquilo. Sentado na areia, sentindo a brisa suave tocar-nos a face em um fim de tarde sem aflições, não faz de ninguém um marinheiro. Para conhecer o mar é preciso uma imersão nas suas águas mais profundas, encarando tempestades, cardumes de tubarões e um sem fim de riscos quando se decide subir num barco. Ou seja, é como nos ensina o poeta Thiago de Mello: “Como ser, se não sendo-o”.
Escrever crônica é um exercício que exige rigor, disciplina e reescrita exaustiva sem que isso fique evidente enquanto se lê. É como conduzir um cego por entre uma densa floresta, no inverno, naquelas noites de neblina e chuva fina. O cego precisa confiar na palavra, na verdade contida em cada frase, na convicção de cada verbo, porque tudo isso vai se configurar em um gesto de segurança e cuidado, apesar das adversidades.
Pode-se extrair poesia desse conflituoso caos urbano? Claro que sim. Seja na descrição de uma paisagem, sobretudo esta que nos brinda o horizonte no entardecer na Serra. Mas se for apenas a descrição da cena, uma boa fotografia resume o deslumbramento. Ao escrever, é preciso encarar o desafio de espremer o sol alaranjado e extrair dele a força, a potência de um gesto como o colo da mãe, embalando o filho, depois de amamentar, acalentando o bebê, suprindo-o de amor enquanto o sono não vem.
O sermão do pai em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, está repleto de palavras com a força de um gesto. Um tanto pela poética que escorre de cada página, esquadrinhando emoções, outro tanto pela voracidade da narrativa que se revela em imagens que nos abraçam. Em certo trecho, depois de uma dura e sincera conversa à mesa, o pai diz ao filho: “Tuas palavras abrem meu coração, querido filho, sinto uma luz nova sobre esta mesa. Cheguei a pensar por um instante que eu tinha outrora semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num campo de espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que estava cego e recuperou a vista!”.
Reafirmo, escrever crônica é transmutar palavras em gestos. Nem sempre de ternura, por vezes, espinhosos, aflitos e rudes. Creio, contudo, que apesar de feridos, maltrapilhos e esfarrapados, podemos ajustar o foco do nosso olhar para além do que se vê. E escrever será sempre uma forma de sublimar temores. Essa, pelo menos, é a minha tábua de salvação.