O inverno em Caxias rasgou solene os céus derramando chuva desde os primeiros minutos do amanhecer da última terça-feira, dia 21. De guarda-chuva em punho, driblando as poças d’água pelo caminho, encontro dois senhores a jogar conversa fora. Um deles, sentado na varanda de casa, grita ao que está do outro lado do portão:
— Cuidado com o sol, vizinho.
Ao que, este, usando chapéu, casaco e guarda-chuva, todo espirituoso, lhe responde:
— Tô me protegendo do sol!
Depois de uma boa gargalhada, o clima foi quebrado pela sentença do homem sentado na varanda de sua casa.
— Quando tinha de chover pra ajudar na plantação, não choveu e, agora, que não precisa mais, chove — diz, como se resmungasse com as mãos.
— Vão trasbordar todos os açudes com essa chuvarada que Deus manda — complementa o senhor de chapéu, resignado.
A poucos metros dali um homem puxa um carrinho com lixo reciclado. Debaixo do aguaceiro, ele carregava dezenas de sacos de lixo e diversas caixas de papelão encharcadas. Mas ainda mais encharcado estava esse homem. Mais do que exausto, ele parecia carregar o peso do mundo, como se fosse a ressignificação daquele poema do Drummond.
Havia uma rua entre o homem encharcado e eu. Ele puxando o carrinho em direção a outro contêiner contendo ainda mais lixo encharcado. Enquanto que, em sentido contrário, do outro lado da rua, eu vestia casaco e boné e, de guarda-chuva, seguia meu caminho para o almoço, tendo apenas os pés encharcados. Enquanto me servia para aplacar a fome, os versos de Os ombros suportam o mundo criavam uma espécie de redemoinho dentro de mim. Em especial, os versos finais da primeira estrofe: “E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco”.
Revi mentalmente a mesma cena, desse homem encharcado puxando o carrinho de lixo seletivo sob o aguaceiro, por diversas vezes durante o dia. E só consegui decifrar o olhar dele através do poema de Drummond. É que o homem encharcado tem o coração seco. Assim como a chuva é metáfora de bênção, a aridez, por antagonismo, pode significar maldição. Só que entre o plantar e o colher há mais coisas do que sonha nossa vã filosofia.
Cada um sabe quanta pedra e espinho precisa arrancar do seu solo para torná-lo fértil. Mas o certo é que sempre haverá mais carros e caminhonetes atravancando o caminho, do que homens encharcados puxando seus carrinhos, atrapalhando o tráfego. Quase invisíveis, os homens encharcados encontram valor no lixo como se garimpassem ouro e ganham a vida recolhendo o que a maioria de nós despreza e refuga.
Ao que Drummond, encharcado de sabedoria, nos ensina: “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. / A vida apenas, sem mistificação”.