Sabe aquelas conversas que surgem praticamente do nada e poderiam ser intermináveis pelo simples prazer da fluidez e da sintonia de pensamento? É raro, pelo menos pra mim, mas acontece. Por conta do 50º Festival de Cinema de Gramado, que se inicia sexta-feira (12), lembrei o dia em que o guri repórter, em sua primeira cobertura do evento, teve a grata surpresa de não apenas entrevistar um dos cineastas mais importantes de nossa Latinoamérica, mas de bater papo a perder o tempo de vista com ele.
Isso foi em 2000. Na época, eu trabalhava na finada Folha do Sul e fui pautado para cobrir o festival com a fotógrafa Janete Kriger, que precisava enviar os rolos de filme da câmera todos os dias pela rodoviária para que fossem revelados e então pudéssemos publicar. Em meio àquela efervescência, eu tinha dois planos: ver o maior número de filmes, fossem da competição principal ou mesmo da mostra Super-8, e entrevistar o Ruy Guerra, cineasta moçambicano, radicado no Brasil, um dos expoentes do Cinema Novo.
De fato, assisti a tudo que podia, da manhã à madrugada. Vi, por exemplo, a estreia de Outros, do Gustavo Spolidoro, que na época levou o Kikito de Melhor Curta-Metragem da Mostra Nacional. Aquele foi o ano de Pantaleón y las visitadoras, comédia dirigida por Francisco José Lombardi, cujo roteiro foi baseado no romance de Mario Vargas Llosa. O filme levou pra casa sete Kikitos.
Tá, e o Ruy Guerra? Então, na manhã seguinte à exibição de Estorvo, filme baseado no livro do Chico Buarque e dirigido pelo Ruy, encontrei o cineasta sentado em um sofá, em uma área que servia de antessala para o debate com os realizadores. Após o debate, segurando um charuto apagado entre os dedos, se sentou sozinho, bem perto de onde eu estava. Timidamente, aproximei-me, expliquei que era repórter e perguntei se ele concederia uma entrevista. Muito gentil, disse que sim, sinalizando que me sentasse ao seu lado. Logo apareceu um cara, talvez um assessor de impressa ou produtor dele, enfim, dizendo que tínhamos apenas 10 minutos. Ok, vamos lá.
Começamos a falar sobre a repercussão do filme e conversa vai, conversa vem, ressurge o assessor pra fechar o assunto. Então, Ruy disse ao rapaz: “Podem ir, alcanço vocês depois”. E, assim, recomeçou o papo. Como eu já tinha material para a reportagem, aproveitei o momento para mergulhar em questões como estética, linguagem, perspectivas narrativas, enfim, sobre as potencialidades cinematográficas, com o cara que havia sido fundamental por estabelecer um novo rumo do cinema no Brasil.
Revendo esse episódio, percebo como são importantes as pessoas que encontramos pelo caminho. Sou grato a esse tempo com o Ruy Guerra, que investiu quase uma hora de conversa comigo. Mesmo sem saber, ele ajudou a estabelecer em mim uma nova convicção, dando sentido ao que eu viria a fazer dali pra diante. Aprendi que ousadia e risco são essenciais, principalmente para quem adentra no espinhoso mundo das artes.
E fecho com uma frase que nunca saiu da minha cabeça, dita pelo Ruy, depois de termos transitado por diferentes temas, da estética como sentido filosófico a fotografia como elemento narrativo crucial: “Nos meus filmes estão todos os vinhos que bebi, os charutos que fumei, os amores e as desilusões”.