Épocas dramáticas para a humanidade, como a vivenciada agora, provocam uma profunda reavaliação de valores. Alguns se sustentam; outros esvanecem tão logo a calamidade perde força e se instaura uma percepção de reajuste da realidade. De qualquer maneira, muitos resíduos comportamentais habitam em nós como um sinal de alerta para o futuro. Como podemos ler a radiografia exposta e clamando por entendimento? Certamente, o cuidado de si ganhou nova dimensão. Andávamos pelas ruas na certeza da permanência, como se a estabilidade estivesse inscrita no mármore. Hoje, fragilizados pela contemplação de tantas mortes, voltamos a perceber: tudo repousa sobre a areia. Os que aderem a uma visão catastrófica, vaticinam tempos sombrios ainda. Apesar das evidências escurecerem a esperança, alinho-me aos que acreditam estarmos extraindo valiosas lições. Vivíamos, até então, em um mundo de desejos fartamente satisfeitos a um piscar de olhos. Felicidade, pensávamos, é somar, acumular, progredir. Ir diante. Mas, repentinamente, fomos obrigados a voltar nosso olhar para o lado de dentro. A negociar conosco. Houve certo nivelamento entre as classes sociais: o mais rico e o mais pobre, ambos já não puderam explorar fronteiras além do âmbito doméstico. E se algo passava batido, pelo enfraquecimento da rotina, voltou a fazer parte da lista de itens essenciais.
Dentre as inúmeras mudanças provocadas, esta parece-me ser emblemática: a seleção natural dos nossos amigos. Antes, funcionávamos no piloto automático. Um gosto pelo acomodamento: se não está bom, nem tão ruim está. E a vida seguia seu fluxo em tons bege, sem grandes sobressaltos ou alvoroços. Comigo desenhou-se um inusitado mapa, quase sem me dar conta. Conhecidos de décadas simplesmente sumiram. Precisei me esforçar na manutenção do vínculo, caso contrário ficariam só na memória afetiva. Mas o oposto também se deu: pessoas distantes revelaram-se amorosas e prestativas, colorindo os dias, as semanas, ampliando o suportável. É estranho, como pode ter acontecido? Tenho a impressão de ser apenas um desvelar do que já estava latente. Bem sinceramente, não deixa de representar um processo educativo. O afastamento dos corpos nos levou a reavaliar a interioridade e os reais afetos. Sendo apenas um entre tantos aspectos reconfigurados. E nas questões das posses materiais é bom saber que precisamos de menos roupas, objetos, conforto em excesso. Isso seduz, mas, dosado, fica melhor ainda.
Quando o pesadelo acabar, haveremos de expressar emoções mais genuinamente. Nem que seja entre os bem próximos, aconchegados à alma. Procure os seus. Os gentis e generosos estão nos ajudando a respirar melhor, como uma espécie de pulmão adicional. É deles o mérito da nossa salvação.